sábado, abril 15, 2006

A Modernidade Dos Pecados


Um leigo não pode ter a presunção de querer discutir religião a um nível demasiado elevado. O que se pode discutir são sentimentos. Uns sentem que não existe Deus, afirmação tão válida e respeitável como dizer o contrário. O problema é esta espécie de transe religiosa do qual não se consegue escapar por manifesto condicionamento, e que é continuamente alimentada por uma máquina de propaganda que exacerba os sentimentos religiosos, colocando-os no topo das preocupações existenciais sem a devida relativização. Neste sentido, mesmo nos tempos que correm, por vezes somos confrontados com algumas coisas que são absolutamente desarmantes. Por exemplo, descobrimos através da comunicação de um auto proclamado porta-voz da divindade, que algumas das principais actividades do mundo moderno podem ser consideradas pecados.
Uma pequena reflexão levanta uma questão pertinente. Quais os reais motivos que levam a considerar navegar na Internet, ver Televisão ou ler Jornais um pecado, mesmo se o tempo gasto nelas for superior ao que se “perde” a ler as sagradas escrituras? A resposta é obviamente simples, qualquer destas acções pode ter como consequência o despertar para as contradições entre o professado pelas religiões e a vida real. Enquanto que a formação hermética das sagradas escrituras impede a libertação do pensamento ao condicioná-lo nas suas opções e horizontes, qualquer destas práticas, no limite, tende a eliminar as barreiras da ignorância.
Ao que parece, estes pecados da era moderna não foram integrados por decreto papal em nenhuma lista oficial desta índole, o que seria supremamente irónico atendendo ao dogma da infalibilidade do Papa. Até porque afirmar que não é o acto em si, mas o tempo que se ocupa em cada uma das coisas que é importante, não é algo facilmente assimilável. Será que não é mais importante uma atitude correcta perante a vida do que ler as sagradas escrituras? Será que fazê-lo no lugar das outras coisas, confere ou retira dignidade moral enquanto ser humano? Se assim for, quem não dedicar tempo nenhum ás sagradas escrituras, ao fim de três segundos na Net, na TV ou a ler jornais, torna-se imediatamente um herege.
Em relação à televisão, ver alguns dos programas é realmente um pecado. Só que isto está apenas relacionado com o conteúdo e não com tempo que se passa em frente ao televisor. Mas mesmo assim, tais comportamentos têm de ser compreendidos. A vida, por vezes, é tão difícil que as pessoas precisam é de algo que as entretenha e não de ler um livro que ao longo das suas páginas, na sua análise ascética da natureza humana, lhes diz que tudo o que fazem é pecado. Na verdade, alguns dos programas são absolutamente inúteis e, portanto, o tempo poderia ser ocupado a ler jornais ou livros. Só que isto também é pecado. Se bem que em Portugal, atendendo aos números da literacia, o cumprimentos desta espécie de decreto já é seguida há muito tempo. Há sempre coisas em que nos conseguimos antecipar.
Como normalmente acontece, em face das críticas, inicia-se a vitimização. Acusam-se os que se pronunciaram contra esta espécie de censura de terem retirado do contexto as palavras proferidas e, na falta de argumentos, atacam quem se levanta contra as suas tentativas de condicionamento global. O mais comum é afirmar tudo não passa de uma alerta contra os comportamentos da sociedade e não como qualquer tipo de censura. Depois aparecem os seus arautos. Os defensores da moral religiosa e da sua prevalência sobre Homem, acusando quem não assume a sua fé (católica), de ser desequilibrado, e de não resistir ás tentações do mundo. Ou então a afirmar que se deveriam queimar todos os livros que questionam as palavras da Igreja Católica. Queimar livros, na essência, é queimar também quem os escreveu. Uma espécie de regresso ao período da inquisição, substituída pela inquisição ao pensamento, ao tentar obliterar qualquer forma de liberdade intelectual que não seja a sua.
Mas isto vai mudar. Se Deus quiser. Lá estou eu a pecar. A invocar o Santo nome de Deus em vão. (Ou não?)

Filipe Pinto.

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