Está na moda, pelo menos de parte de alguma da elite pensante portuguesa, atacar a alienação da população portuguesa provocada pelo mundial de futebol. Contudo, por muito que tentem esclarecer em longas e exaustivas dissertações, continuam sem explicar porque consideram que existe um problema com esta temporária fuga da realidade. Não é necessário um raciocínio demasiado elaborado para perceber que este corte com o quotidiano é auto induzido e, não sendo perceptível a diferença entre o antes e o depois na forma como abordam a vida e os seus problemas, tudo isto mais parece um ataque ao jogo do que outra coisa qualquer. A única diferença reside nos limites da alienação. Assim, a atitude normal é fingir que os problemas não existem, enquanto que neste momento, durante os jogos esvaziam o cérebro de todos os pensamentos e retrocede-se do ponto de vista existencial aos primórdios da evolução humana, quando o significado da vida não era a questão fundamental. Ao ler alguns artigos, sobreveio claramente uma ideia que quase se pode generalizar. Há pessoas que, na sua redutora concepção do mundo, não percebem que os outros possam ter interesses diversos dos seus. O comum dos mortais gosta de futebol. Quem se considera além dessa comunidade não pode sofrer dos mesmos males, sob pena de se tornar também comum. Se assim fosse, estes espíritos narcisistas estariam de alguma forma a negar-se o direito de serem condescendentes. Ao contemplarem extasiados a sua existência, intitulam-se de guardiães da moral pública e cívica, enquanto, deslumbrado e inconsciente, o povo apenas se preocupa com o futebol. Convencem-se que apenas eles continuam a manter a vigilância perante tudo o que corre mal neste país, alertando todos os incautos que, quando a festa chegar ao fim, todos os problemas ainda cá estarão. Esta atitude é de uma arrogância e de um autismo sem limites. De uma arrogância porque é uma forma de se colocarem à margem num patamar de superioridade, conseguindo, deste modo, evidenciar-se. A sua mensagem é simples: -As pessoas inconsequentes não têm a capacidade de perceber as consequências deste estado de transe futebolístico e são, por isso mesmo portadoras de uma insondável imoralidade, com origem na forma efusiva com que vivem o mundial de futebol. Para grandes males, grandes remédios e cá estão os auto nomeados protectores para impedir o esquecimento e, aproveitando a ocasião, exercerem a sua função de educadores. De autismo, e aqui é que se revelam no seu pior, porque não se apercebem o porquê da necessidade de alienação, ou melhor, de uns momentos de abstracção. Se atentarmos ás agruras com que quase todas as pessoas convivem diariamente, este distanciamento conseguido, ainda que efémero, constitui o único momento de ausência de preocupações, uma espécie purga momentânea do sofrimento suportado. Assim, com maior ou menor gravidade, a vida não está fácil para a maioria de população mundial. As guerras, a fome, as doenças, problemas ambientais, os problemas sociais, são factores não apenas de instabilidade social, mas também, e fundamentalmente, de instabilidade pessoal. Quem pode, por tudo isto, condenar esta busca de esquecer? Ninguém. Confrontar-se minuto a minuto com o espectro do desemprego, com o mês que sobra para o dinheiro que se tem, com a falta de expectativas para o futuro, é algo desesperante. Dói na alma com uma intensidade, que só que tem estes problemas o sente verdadeiramente. Para os outros, esses que escrevem, não passam de temáticas para emitirem um opinião massacrante e desfasada da realidade. Às pessoas a quem são pedidos continuamente sacrifícios, a quem se apontam todos os defeitos, para os quais crise e vida são uma e a mesma coisa exige-se mais do que é possível suportar. A título de exemplo e não raras vezes, eis que surge uma série de iluminados com comentários do género, - “temos que subir a taxa de juro, para controlar a inflação” – palavras que ferem com adagas o já muito mutilado cérebro obrigado a uma permanente ginástica mental para a sobrevivência económica, enquanto sentem o nó na garganta a apertar mais um bocadinho. Que convive diariamente com a subida dos lucros dos bancos em coexistência com a subida das suas dificuldades para sobreviver, não merece que lhe dêem alguma folga existencial? À sua escolha? Sem virem os arautos da desgraça e putativos portadores da moral cívica a exercer uma crítica que não é justa. O futebol é, deste modo, como o álcool, sem provocar os estragos quase permanentes que estão associados ao alcoolismo. Assim como a ressaca traz consigo as lembranças que o álcool pretendia afogar, o fim dos jogos ou da festa trazem a vida com eles. Só que uma purga pode ter efeitos rejuvenescedores, o distanciamento conseguido pode permitir amolecer uma qualquer obsessão e garantir um reposicionamento face aos problemas. Se assim não for, o caminho para a depressão é retomado, após um curto intervalo. Em suma, o que se procura é uma abstracção que permita alguma espécie de felicidade, ainda que efémera. Será isto condenável? Filipe Pinto.
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