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quinta-feira, maio 07, 2009

Suttree


Caro amigo, nas horas poeirentas e intemporais da cidade, agora que as ruas jazem negras e exalam nuvens de vapor na esteira dos camiões-cisterna e agora que os bêbedos e os sem-abrigo desaguaram nas vielas e nos terrenos baldios, abrigados junto aos muros, e os gatos vagueiam nas soturnas cercanias, esguios e de espáduas altaneiras, agora nestas galerias empedradas ou de tijolos enegrecidos de fuligem onde as sombras dos fios eléctricos formam uma harpa espectral nas portas das caves, ninguém caminhará senão tu.
Velhos muros de pedra que resistiram, indemnes, às intempéries, com ossos fossilizados ocultos nas suas estrias, escaravelhos calcários alojados nas pregas desta planura, outrora leito de um mar interior. Árvores magras e escuras que se avistam através da estacaria metálica, mais, além, onde os mortos habitam uma pequena metrópole só sua. Uma curiosa arquitectura de mármore, estelas e obeliscos e cruzes e pequenas lápides gastas pela chuva em cuja face os nomes se esbatem com o passar dos anos. A terra repleta de amostras da arte do fabricante de ataúdes, ossos reduzidos a pó e seda apodrecida, as vestes dos mortos manchados de carne putrefacta. Lá adiante, à luz azul dos candeeiros, os carris do eléctrico perdem-se nas trevas, curvos como esporões de galo ao lusco-fusco de ouropel. O aço exala o calor do dia, podes senti-lo através das solas dos sapatos. Deixa para trás as paredes de chapa ondulada destes armazéns e percorre as ruelas arenosas onde carros esventrados repousam, sorumbáticos, sobre pedestais de tijolos de cimento. Atravessa maciços labirínticos de sumagre e erva-tintureira e madressilva ressequida que dão para os taludes barrentos do caminho-de-ferro, cobertos de sulcos e entalhes. Trepadeiras cinzentas enroscadas para a esquerda neste hemisfério setentrional, torcidas pela mesma força que molda a concha do burrié. Ervas daninhas que brotaram da cinza, entre tijolos. Uma escavadora a vapor de pá erguida, recortada sobre o céu nocturno num abandono solitário. Atravessa aqui. Sobre carris bifurcados e eclises onde as automotoras roncam como leões na escuridão do parque ferroviário. Penetra numa cidade mais sombria, deixa para trás candeeiros de lâmpadas partidas à pedrada, choupanas fumegantes de paredes oblíquas e cães de porcelana e pneus pintados onde crescem flores sujas. Percorre pavimentos lacerados pela devastação, o lento cataclismo do abandono, os fios eléctricos que pendem, barrigudos e envoltos em cordéis de papagaios-de-papel, de poste em poste, por entre as constelações, adornados com toscas gravatas feitas de garrafas atadas aos pares pelos gargalos ou brinquedos de petizes. O acampamento dos danados. Terrenos, quiçá, onde leprosos de lábios gotejantes deambulam sem sineta.
Primeira página do livro “Suttree” de Cormac McCarthy, traduzido por Paulo Faria e editado pela Relógio D’Água Editores, Fevereiro de 2009.
Quarto romance publicado por McCarthy (originalmente em 1979), é o seu livro mais extenso e aquele que mais tempo de escrita lhe consumiu: pelo menos vinte anos (período durante o qual escreveu também e publicou outros três romances). Será igualmente o mais "autobiográfico", tomando por cenário a provinciana "metrópole" de Knoxville (onde McCarthy cresceu e passou parte da sua vida de adulto) e arredores. Não há em "Suttree" uma progressão dramática que lisonjeie a atenção do leitor, mas antes uma sucessão (não linear cronologicamente, nem evidente do ponto de vista da enunciação) de episódios, de quadros, da vida do protagonista entre 1950 e 1955. Cornelius Suttree é alguém que abandonou tudo - o privilegiado estauto social familiar, a mulher e o filho pequeno (que depois morre) -para viver solitariamente ao sabor da corrente (literal e metaforicamente). Não sabemos por que o fez, que idade terá, o que procura (se é que procura algo); sabemos que se abriga numa miserável casa flutuante no rio, que se dedica preguiçosa e altivamente à pesca à linha para arranjar os poucos tostões de que necessita para sobreviver, sabemos que esteve preso (e é quando encontra outra entranhável personagem deste livro, Harrogate, um adolescente fornicador de melancias), sabemos que vagueia melancolicamente sem destino nem premeditação, que confraterniza com pobres e marginais, humilhados e ofendidos, rameiras e travestis (mas não com banqueiros e corretores), com os quais é alheiamente generoso e bom. São anos "na companhia de larápios, desvalidos, celerados, párias, poltrões, tratantes, rústicos, sandeus, homicidas, tavolageiros, alcouceiras, marafonas, rascoeiras, salteadores, beberrões, bebedanas, borrachos e arquiborrachos, labrostes, lúbricos, vagabundos, bargantes e tantos outros debochados, vá lá saber-se qual deles mais perverso" (continuo sem saber se a por vezes estonteante riqueza lexical de McCarthy tem origem no seu gosto afiado pela descrição minuciosa e exacta, seja da fauna ou da flora, seja de ofícios ou artefactos, ou se é o inverso).( Ípsilon).

quinta-feira, abril 30, 2009

O Tigre Branco


Para o gabinete do Primeiro-Ministro:
Sua Excelência Wen Jiabao
Pequim
Capital da Nação Amante da Liberdade da China
Do gabinete de:
"O Tigre Branco"
Um homem dado à reflexão
E um empresário
Que reside no centro mundial de Tecnologia e Subcontratação Electronics City Phase 1 (mesmo à saída de Hosur Main Road) Bangalore, Índia
Sr. Primeiro-Ministro
Nem eu nem o senhor falamos inglês, mas há coisas que só podem ser ditas em inglês.
A minha antiga patroa, a falecida ex-mulher do Sr. Ashok, Madame Pinky, ensinou-me umas quantas coisas; e, às 11h32 da noite de hoje, o que foi à cerca de dez minutos, quando a senhora da All India Radio anunciou: "O Primeiro-Ministro Jiabao chega a Bangalore na próxima semana", saiu-me logo uma delas.
Na verdade, sempre que homens ilustres como o senhor visitam o nosso país, sai-me sempre o mesmo. Não que eu tenha alguma coisa contra homens ilustres. À minha maneira, senhor, considero-me um seu igual. Mas sempre que vejo o nosso primeiro-ministro e os seus distintos colaboradores chegados serem conduzidos ao aeroporto em automóveis pretos, saírem e porem-se a fazer-lhe namastés diante duma câmara de televisão e a assegurarem-lhe de que a Índia é santa e virtuosa, não me consigo conter de dizer aquilo em inglês.
Bom, então, Vossa Excelência sempre nos vem visitar na próxima semana, não é verdade? Em geral, a All India Radio é de fiar em assuntos deste âmbito.
Era uma piada, senhor.
Ah!
É por isso que me decidi a perguntar-lhe directamente se é mesmo verdade que vem a Bangalore. Porque, a ser assim, tenho algo importante a comunicar-lhe. Sabe, a senhora da rádio disse: " O Senhor Jiabao vem em missão: quer conhecer a verdade a respeito de Bangalore".
Senti o sangue gelar-me nas veias. Se há alguém que saiba a verdade a respeito de Bangalore, essa pessoa seu eu.
A seguir, a senhora locutora acrescentou: " O Senhor Jiabao pretende conhecer alguns empresários indianos e ouvir a história do seu êxito pela sua própria boca".
Aqui, ela explicou um pouco melhor. Ao que consta, senhor, vocês, os chineses, encontram-se muito adiantados em relação a nós em todos os aspectos, à ecepção do facto de não terem empresários. E a nossa nação, apesar de não ter àgua potável, nem electricidade, nem sistemas de esgotos, nem transportes públicos, nem regras de higiene, nem disciplina, nem boas maneiras, nem pontualidade, verdade seja dita que empresários não lhe faltam. São aos milhares. Sobretudo na área da tecnologia. E foram estes mesmos empresários - nós, empresários- que implantaram todas as empresas de subcontratação que agora praticamente governam a América.
Primeira página do livro O Tigre Branco, de Aravind Adiga, EDITORIAL PRESENÇA, 1ª edição, Março 2009
Da contra capa:
Premiado com o Booker Prize de 2008, O Tigre Branco é um romance de estreia auspicioso que, sem cair no cliché do romantismo exótico e superficial, nos revela uma Índia ainda muito pouco explorada pela ficção, a Índia negra, violenta e exuberante das desigualdades socioculturais endémicas. Aravind Adiga oferece-nos um retrato cru e muito pouco glamoroso da desumana realidade de vida das classes mais pobres pela voz espirituosa e mordaz do narrador, Balram Halwai, um jovem que cresce no interior miserável da Índia e se torna um empresário de sucesso em Bangalore. E é através do seu percurso moralmente ambíguo que conhecemos as discrepâncias chocantes entre o luxo extravagante da elite rica dos boulevards e a luta desesperada pela sobrevivência dos que nada têm. Uma comédia negra irreverente que desmistifica a Índia lírica e nostálgica que tantas vezes idealizamos.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

A Origem das Espécies


Quando observamos os indivíduos pertencentes à mesma variedade ou subvariedade das plantas cultivadas há mais tempo e dos animais domésticos mais antigos, um dos primeiros aspectos que sobressaem é que estes, geralmente, diferem muito mais uns dos outros do que o que acontece entre indivíduos pertencentes a qualquer espécie ou variedade selvagem. Se reflectirmos sobre a vasta diversidade das plantas que têm sido cultivadas e dos animais que têm sido domesticados, sofrendo variações ao longo dos tempos sob os mais diversos climas e circunstâncias, somos levados a concluir que esta grande variabilidade se deve simplesmente ao facto de as nossas produções domésticas terem sido criadas sob condições de vida menos uniformes, e de alguma forma diferentes, daquelas a que a espécie-mãe esteve exposta na natureza. Existe também, na minha opinião, alguma probabilidade real na ideia proposta por Andrew Knight de que esta variabilidade pode em parte estar associada ao excesso de alimento. Parece bastante evidente que os seres orgânicos tenham de ser expostos às novas condições de vida durante várias gerações, até que se produza qualquer variação apreciável; como também parece evidente que, uma vez que a organização interna comece a variar, esta continue em regra a fazê-lo por inúmeras gerações. Não existe nenhum registo de um caso em que um organismo variável tenha cessado de variar no estado doméstico. As nossas plantas com histórias de cultivo mais antigas, tal como o trigo, ainda produzem com frequência novas variedades. Os nossos animais domésticos mais antigos são ainda susceptíveis de modificações ou aperfeiçoamentos rápidos.
1ª Página do livro, A Origem das Espécies, de Charles Darwin, Publicações Europa-América, Edição Agosto de 2005.


“O livro que abalou o mundo” como é muitas vezes referido, foi lançado no dia 24 de Novembro de 1859 com o título original de On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a Origem das Espécies Através da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida). A primeira edição de 1250 exemplares esgotou no próprio dia, sucedendo-lhe mais cinco edições, que compreendiam dados adicionais e revisões contextuais para rebater os argumentos que se foram levantando. Curiosamente, a palavra evolução é pela primeira vez introduzida na sexta edição, assim como, a expressão “sobrevivência do mais apto”, que não é da autoria de Darwin, mas sim do filósofo Herbert Spencer. Portanto é inapropriado relacionar o conceito “darwinismo social” a Charles Darwin. “Luta pela sobrevivência”, “direito do mais forte” nunca foram palavras de Charles Darwin, mas sim conceitos manipulados por outros. O darwinismo social é um conceito que se deveria chamar de “spencerismo”, pois não tem absolutamente nada a ver com a teoria de evolução de Charles Darwin.
À data de publicação, “A Origem das Espécies” gera um escândalo sem precedentes. Mesmo que, no início, se iniba de evocar o homem e o macaco, toda a gente compreende o alcance da Teoria. Ao afirmar que todas as espécies vivas descendem de um antepassado comum em resultado de um processo de evolução que, por selecção natural, eliminou os menos adaptados, Darwin entra em conflito não só com a fé, mas também com o antropomorfismo. Escarnecido pela imprensa, acrescido de uma cauda e dotado de um corpo simiesco pelos caricaturistas, desprezado pela Igreja, Darwin tornou-se famoso da noite para o dia.
Desde a Antiguidade que a perfeição dos mecanismos naturais era assumida como prova da existência divina. Com a Teoria da Evolução Darwin, diz-se adeus à Providência. Trata-se, nem mais nem menos, de substituir a religião pela ciência. O francês Jean-Henri Fabre dedicará a sua vida a tentar desmontar a teoria darwiniana, na qual não vê senão “um jogo do espírito”. Outros entregam-se de corpo e alma à sua defesa, como Thomas Huxley ou o botânico Joseph Hooker.
O debate mais espectacular teve lugar na Universidade de Oxford, em 30 de Junho de 1860, perante uma plateia repleta. O duelo opõe os partidários do investigador, em particular o zoologista Thomas Huxley, apelidado de “buldogue de Darwin”, ao bispo de Oxford, Sam Wilberforce. Numa célebre interpelação, este último pergunta a Huxley se é “da parte do seu avô ou da sua avó que descende do macaco”, provocando uma réplica não menos memorável, embora persistam dúvidas sobre as suas exactas palavras: “Se a questão é se eu preferiria ter um macaco como avô ou um homem altamente favorecido pela natureza, que possui grande capacidade de influência, mas mesmo assim emprega essa capacidade e influência para o mero propósito de introduzir o ridículo numa discussão científica séria, eu não hesitaria afirmar a preferência pelo macaco!”
A “guerra do macaco” continua hoje em dia, mesmo que o Vaticano tenha admitido, em 1996, que a teoria da evolução era “mais do que uma hipótese”, os poderosos lóbis protestantes, nunca abdicarão de tentar impôr o"desígnio inteligente" da criação do Mundo.

sexta-feira, junho 06, 2008

O Dia Mais Longo


O velho von Rundstedt, na sua sagacidade, nunca confiara nas defesas fixas. Tinha dirigido o cerco magistral da linha Maginot, que levara à derrota da França em 1940. Para ele, a Muralha do Atlântico não passava dum monumental bluff destinado mais ao povo alemão do que ao inimigo… e o inimigo, graças aos seus agentes de informação, sabe mais do que nós sobre a Muralha”. As fortificações “aborreciam temporariamente” os Aliados, mas não dominariam a ofensiva. Nada, na opinião de von Rundstedt, poderia impedir o sucesso dos primeiros desembarques. O seu plano, a sua contra-ofensiva, consistia em juntar o maior número possível de tropas em pontos relativamente afastados da costa e em atacar depois do desembarque. Era nesse momento que seria preciso assestar o golpe – na altura em que o inimigo estava ainda fraco, em que o seu abastecimento não estava organizado e em que não tinha tido tempo para consolidar a sua testa-de-ponte.
Rommel combatia energicamente esta teoria. Para ele, só existia um processo de repelir o assalto: de frente, cabeça baixa. Não teriam tempo para mandar vir reforços maciços da retaguarda. Os comboios, estava certo, seriam destruídos pelos incessantes ataques aéreos e pelos bombardeamentos navais. Na sua opinião tudo deveria estar a postos, no local, desde as tropas de infantaria até às divisões blindadas. O ajudante de campo de Rommel lembrava-se bem do dia em que o marechal lhe expusera a sua estratégia. Estavam numa praia deserta e Rommel, silhueta maciça e atarracada, dentro do pesado capote, com um lenço ao pescoço, andava para trás e para diante agitando o bastão de marechal “oficioso”, um chicote negro de botão de prata donde pendia uma borla de seda preta, branca e vermelha. Mostrava o areal com a ponta do chicote.
- A guerra será ganha ou perdida nestas praias – disse. – Só temos uma possibilidade de repelir o inimigo, e é quando estiver na água, chafurdando e lutando para chegar a terra. Os nossos reforços nunca chegarão aos locais de ataque e seria loucura esperar por eles. A Hauptkampflinie (a principal linha da resistência) estará aqui. Todas as nossas forças devem encontrar-se ao longo destas praias, Acredite-me, Lang, as primeiras vinte e quatro horas da invasão serão decisivas…Tanto para os Aliados como para a Alemanha, esse será o dia mais longo.
Excerto do livro, O Dia Mais Longo, de Cornelius Ryan, Livraria Bertrand, 3º edição, sem data da edição.

sábado, maio 31, 2008

Malone está a morrer


Dentro em breve estarei apesar de tudo bem morto finalmente. Talvez para o mês que vem. Será então o mês de Abril ou de Maio. Porque o ano vai pouco adiantado, mil pequenos indícios mo dizem. Pode ser que me engane e que passe ainda o São João ou até o 14 de Julho, festa da liberdade. Que estou eu a dizer, sou capaz de chegar à Transfiguração, sendo como sei que sou, ou à Assunção. Mas não creio, não creio enganar-me quando digo que esses festejos, este ano, se farão sem mim. É o que sinto, sinto-o há já alguns dias, e acredito na minha impressão. Mas em que é que essa impressão é diferente das que me têm enganado desde que nasci? Não, trata-se de um género de pergunta que já não pega, comigo já não pega, já não preciso de pintar. Morria hoje mesmo, se quisesse, bastava fazer um bocadinho de força, se fosse capaz de querer, se fosse capaz de fazer força. Mas mais vale deixar-me morrer, sem apressar as coisas. Já não quero pesar na balança, nem para um lado nem para o outro. Vou ficar inerte e neutro. Será Fácil. O que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos. De resto tenho menos sobressaltos desde que aqui estou. Tenho ainda evidentemente acessos de impaciência de vez em quando. Disso é que tenho de me defender agora, durante quinze dias ou três semanas. Sem exagerar é claro, rindo e chorando sossegado, sem me exaltar. Sim, finalmente vou ser natural, sofrerei mais, e depois menos, sem tirar conclusões, ouvir-me-ei menos, não serei frio nem quente, serei morno, morrerei morno, sem entusiasmos. Não me verei morrer, isso falsearia tudo.
1ª Página do livro, Malone Está a Morrer, de Samuel Beckett, Edições Dom Quixote, 2ª edição, Maio de 2003.
Nota: Considerado um dos maiores escritores e dramaturgos do século XX, Samuel Beckett nasceu a 13 de Abril de 1906, na localidade de Foxrock, perto de Dublin, na Irlanda.
Nascido no seio de uma abastada família protestante, não teve uma infância muito feliz e depressa se tornou num jovem infeliz. Inadaptado às regras de uma sociedade que considerava repulsiva, refugia-se na solidão, que faz transparecer em toda a sua obra.
Em 1923 ingressa no Trinity College, de Dublin para fazer a sua formação académica, onde em 1927, se licenciou em línguas modernas, francês e italiano, com uma excelente classificação.
Em 1928, Beckett mudou-se para Paris, onde conheceu James Joyce, e depressa se tornou um seguidor do escritor. Esta amizade será decisiva para a sua carreira literária. Aos 23 anos, escreveu um ensaio em defesa de "Ulisses", a obra-prima de James Joyce, que tinha sido proibida na sua Irlanda natal.
Depois de um estudo sobre Proust, Samuel Beckett, chegou à conclusão que o hábito e a rotina eram o “cancro do tempo”: o tempo, inexorável, ao qual estamos presos. Samuel Beckett, faz questão de nos lembrar, que a cada momento, o fim se aproxima, que a morte espreita, que o jogo irá acabar e nós irremediavelmente, perderemos.
Se temos conhecimento disso, então por que continua-mos à espera? Porquê? Porque devemos saber que enquanto se espera a vida continua e devemos vive-la da melhor forma possível, a cada segundo, compreendendo-a pequena e grandiosa ao mesmo tempo.
Por causa destas conclusões, abandonou o seu cargo no Trinity College e iniciou uma viagem pela Europa, visitando a França, Inglaterra e a Alemanha, onde viveu as mais diversas experiências que depois se traduziram em personagens.
Em 1938 fixou residência em Paris, onde dois acontecimentos o vão marcar para o resto da vida: é gravemente ferido ao ser agredido por um estranho, que lhe desferiu uma facada no peito, e conhece Suzanne Deschevaux-Dusmenoil, o amor da sua vida e com quem se casaria em 1961.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Beckett permaneceu em Paris, onde lutou pela Resistência, até que alguns membros o seu grupo foram presos e Beckett foi forçado a refugiar-se, com a sua mulher na zona conhecida como "França Livre", a parte da França que não tinha sido ocupada, pelas tropas nazistas.
Em 1945, regressou a Paris e iniciou o seu período mais prolífico enquanto escritor. No período cinco anos, entre 1948 e 1953, produziu a sua obra mais significativa. Escreveu "Eleutheria" (1948), "À espera de Godot" (1952), e a trilogia, universalmente aclamada como essencial à compreensão da experiência humana, “Molloy” (1951), “Malone está a Morrer” (1951) e “O Inominável” (1953).
O seu primeiro sucesso, chegou, em 1952 com "À Espera de Godot". Apesar das especulações, a pequena peça onde nada acontece, tornou-se num sucesso repentino e um marco no teatro do absurdo. As personagens desta peça, exemplificam a situação do homem encurralado num mundo de rotina: dois vagabundos, Vladimir e Estrabon, indecisos e inertes, esperam em vão a chegada de um personagem enigmático e misterioso, Godot, símbolo do inalcançável, que de um modo inexplicável, melhorará as suas vidas.
Depois do sucesso de "À Espera de Godot", Samuel Beckett dedica-se a traduzir os seus textos para inglês e volta a escrever nesta língua, construindo, um caso raro na Literatura moderna, uma obra bilingue.
As obras de Beckett traduzem com um grande poder de síntese, toda a condição humana. As questões que são necessárias esclarecer dessa condição são amplamente trabalhadas e poeticamente materializadas. Os personagens das suas obras, reflectem a posição do autor em relação à vida, à morte, aos desejos, aos fracassos e à impossibilidade da felicidade.
O reconhecimento crescente do seu trabalho culminaria com o Prémio Nobel da Literatura, em 1969. Depois disso e apesar de ser aclamado a nível mundial, continuou a escrever até à sua morte, que ocorreu em Paris, a 22 de Dezembro de 1989, vítima de enfisema, contra o qual lutou nos últimos três anos, da sua vida.

sexta-feira, maio 30, 2008

O Romance Da Minha Vida


Dá-me um café duplo, meu irmão.
Durante dezoito anos o seu espírito repetiu tantas vezes aquela frase, que as palavras acabaram por perder o significado na memória e no paladar, para soarem vazias, como uma palavra de ordem dita num idioma incompreensível. Porque, apesar do esquecimento que tentou impor a si próprio como a melhor alternativa, Fernando Terry sofreu demasiadas vezes aquelas rebeliões imprevisíveis da consciência e, com uma assiduidade incontrolável, dedicou alguns pensamentos ao que desejara sentir no preciso momento em que, depois de beber um café duplo em frente ao cabaret Las Vegas, acendesse um cigarro para atravessar a calle Infanta e descer pela Veinticinco, disposto a reencontrar-se com o melhor e com o pior do seu passado. Da melancolia ao ódio, da alegria à indiferença, do rancor ao alívio, nas suas viagens imaginárias Fernando tinha jogado com todas as cartas da nostalgia, sem pressentir que na manga escura, escondida, podia permanecer aquela tristeza agressiva que se lhe tinha cravado na alma, com uma interrogação: tinhas de voltar?
No início do seu exílio, durante os meses de incerteza vividos numa tenda asfixiante nos jardins do Orange Bowl de Miami, sem saber ainda se obteria a autorização de residência nos Estados Unidos, Fernando tinha começado a pensar num regresso curto mas necessário, que o ajudasse a estancar as feridas ainda sangrentas provocadas por uma traição demolidora e talvez, quem sabe, a curar a sensação vertiginosa de se achar descentrado, foro do tempo e do espaço. Depôs, com o passar dos anos e a persistência da barreira de leis e mediadas que dificultavam qualquer regresso, tinha tratado de se convencer de que o esquecimento era possível, de que podia acabar por ser o melhor dos remédios. Pouco a pouco começou a sentir o seu alívio benéfico e a ânsia do regresso foi-se diluindo até se transformar numa angústia adormecida que, astuciosamente, vinha à tona nalgumas noites insubornáveis quando, na solidão do seu sótão madrileno, o seu cérebro insistia em evocar algum instante dos seus trinta anos vividos na ilha.
1ª Página do livro, O Romance Da Minha Viva, de Leonardo Padura, Asa Editores, 1ª edição, Fevereiro de 2005.
Nota: Depois de dezoito anos de exílio, Fernando Terry decide voltar por algum tempo a Havana, atraído pela possibilidade de encontrar finalmente a autobiografia desaparecida do poeta José María Heredia, ao qual dedicou a sua tese de doutoramento. De passagem, terá oportunidade de esclarecer de uma vez por todas quem foi que o denunciou e provocou a sua expulsão da universidade. Paralelamente à história desse reencontro e à procura do almejado manuscrito, juntam-se, no plano narrativo, dois outros planos temporais: o da vida de Heredia, nos começos do século XIX, quando a ilha era ainda uma colónia, e o dos últimos dias do seu filho, José de Jesús de Heredia, um mação dos princípios do século XX.
Paulatinamente, as vidas dos vários personagens e as suas peripécias vão-se entretecendo em paralelismos inesperados, como se em Cuba a História se intrometesse sempre da mesma maneira no destino individual de todos aqueles que se destacam pelo seu talento: as delações, os exílios, as intrigas políticas acompanham sempre os criadores, seja qual for o período histórico em que lhes tenha caído em sorte viver.(Asa).

quinta-feira, maio 29, 2008

O Deus das Moscas


O garoto de cabelo cor-de-mel agachou-se, deixou-se escorregar ao longo do último troço do rochedo e encaminhou-se para a lagoa. Embora tivesse tirado o blusão, parte do seu uniforme escolar, e o arrastasse agora pela mão, a camisa cinzenta colava-se à pele e o cabelo encodeava-se-lhe na testa. À sua volta, a funda clareira rasgada na selva era um banho de calor. Rompia pesadamente por entre as lianas e os troncos quebrados, quando um pássaro, uma visão de vermelho e amarelo, cintilou numa fuga para o alto com um grito de feitiço. A este grito o eco respondeu com outro.
-Eh! – disse uma voz. – Espera um momento!
O matagal, num dos bordos da clareira, agitou-se e uma saraivada de gotas de água caiu com estridor.
-Espera um momento – repetia a voz. – Estou aqui preso.
O garoto de cabelo cor-de-mel abaixou-se e repuxou as peúgas com um gesto automático que fez com que a selva por um momento se parecesse com os condados ingleses.
A voz ouvia-se de novo.
-Nem me posso mexer com todas estas trepadeiras.
O dono da voz emergiu, esbracejando com o restolho alto, de modo que os ramalhos vibraram contra uma pala sebenta. As rótulas nuas dos joelhos eram grossas e tinham sido apanhadas e arranhadas por espinhos. Debruçou-se, tirou cuidadosamente os espinhos e voltou-se. Era mais baixo que o garoto louro e muito gordo. Adiantou-se, buscando piso seguro para os pés, e olhou então através dos óculos de lentes grossas.
1ª Página do livro, O Deus das Moscas, de William Golding, Vega, 1º edição, 1997.

Nota: William Golding (1911-1993), romancista inglês, Prémio Nobel em 1983, nasceu na Cornualha e cursou a Universidade de Oxford, dedicando-se ao estudo da Literatura inglesa. Professor, abandonou a profissão durante a II Grande Guerra, tendo servido na Royal Navy.Depois da Guerra, Golding deu-se à escrita.0 seu primeiro romance, em 1954, O Deus das Moscas (filme de Peter Brook em 1963), foi um sucesso, tendo a crítica internacional considerado a obra como uma das maiores do século XX. Depois deste seu primeiro título (traduzido em todo o mundo culto), Golding escreveu ainda Os Herdeiros (1955), Pincher Martin (1956), Borboleta de Latão (1958) e Queda Livre (1959).Outras obras: Rites of Passage (1980), Close Quarters (1987) e Fire Down Below (1989). Estes romances constituem uma trilogia galardoada com o Booker Prize. Assunto da trilogia: dilemas morais e reacções humanas em situações limite. O mar e a navegação são presenças constantes na sua escrita.Escreveu também vários ensaios - e o seu último romance, The Double Tongue, foi publicado postumamente em 1995. Em 88, foi elevado ao grau de Cavaleiro, juntando ao seu nome o título de Sir. (Vega).

quarta-feira, maio 28, 2008

AUSTERLITZ


Durante a segunda metade dos anos 60, em parte por motivos de estudo, em parte por outros que eu próprio não descortino bem, viajei amiúde entre a Inglaterra e a Bélgica, umas vezes por um ou dois dias, outras várias semanas. Numa destas excursões à Bélgica que, assim me parecia, me levavam cada vez mais longe em terra alheia, fui parar, numa gloriosa manhã do princípio do Verão, à cidade de Antuérpia, que até então apenas conhecia de nome. Logo à chegada, enquanto o comboio deslizava lentamente pelo viaduto rematado de ambos os lados por umas curiosas torrezinhas aguçadas e entrava no vão escuro da estação, fui tomado de um mal-estar, uma sensação de incómodo que não mais me largou durante todo o tempo dessa minha visita à Bélgica. Recordo ainda a insegurança dos passos com que dei uma volta pelo centro da cidade, percorri Jerusalemstraat, Nachtegaalstraat, Plikaanstraat, Paradijstraat, Immerseelstraat e muitas outras ruas e vielas, e que, por fim, afligido por uma dor de cabeça e pensamentos desagradáveis, me refugiei no jardim zoológico, perto de Astriplein, ao lado da Centraal Station. Por ali fiquei, aver se me sentia um pouco melhor, sentado num banco meio à sombra junto a um aviário onde esboaçavam numerosos tentilhões e pintassilgos. Enquanto a tarde foi passando deambulei pelo parque e acabei por ir ver o Nocturama, aberto apenas há um par de meses. Foi preciso algum tempo para que os olhos se adaptassem àquela penumbra artificial e eu pudesse reconhecer os diversos animais que levavam vidas obscuras por trás da vidraça, a uma pálida luz lunar. Já não sei quais foram os animais que vi nessa visita ao Nocturama de Antuérpia.
1ª Página do livro, Austerlitz, de W.G. Sebald, Editorial Teorema, 1ª edição Setembro de 2004.

Nota: A morte prematura de W.G. Sebald foi uma perda irreparável para a literatura contemporânea. W. G. Sebald, morreu tragicamente em Dezembro de 2001, de ataque cardíaco, depois de sofrer um acidente de viação, numa rua da cidade inglesa de Norwich. Nascido em Wertach im Allgäu, na Alemanha, em 1944, estudou Língua e Literatura Alemãs em Freiburg, na Suiça e em Manchester. A partir de 1970 ensinou na Universidade de East Anglia, em Morwich, tornando-se professor de Literatura Europeia, em 1987. Deixou um legado pouco volumoso em quantidade, apenas quatro obras de ficção, e não digo romances, pois é extremamente difícil classificar o género literário, da obra de W.G. Sebald.
Mas, independentemente da dificuldade que os estudiosos têm de rotular a obra de Sebald, este seu livro, Austerlitz, é provavelmente o melhor romance escrito no século XXI.

terça-feira, maio 27, 2008

O Cão Amarelo


Mas eu vou para Hollywood mas eu vou para o hospital, mas tu és primeiro mas tu és último, mas ele é alto mas ela é baixa, mas tu ficas em cima mas tu vais para baixo, mas nós somos ricos mas nós somos pobres, mas eles têm sossego mas eles têm…
Xan Meo foi ao Hollywood. E minutos depois, à velocidade da urgência e acompanhado pelos acordes estridentes do sofrimento electrificado, Xan Meo foi para o hospital. Por causa da violência masculina.
-Vou sair, eu – disse ele à sua esposa americana, Russia.
-Uh – disse ela, pronunciando como onde em francês.
-Não demoro. Eu dou-lhes banho. E também lhes leio uma história. Depois faço o jantar. A seguir ponho a louça na máquina. E a seguir dou-te uma boa massagem nas costas. Está bem assim?
-Posso ir também? – perguntou Russia.
-Acho que me apetece estar sozinho.
-Queres é ficar sozinho com a tua namorada.
Xan sabia que a acusação não era a sério. Mas odoptou uma expressão de agravo (um espessamento da fronte) e disse, não pela primeira vez e, tanto quanto sabia, com sinceridade: - Não tenho segredos para ti, pequena.
-Mm – disse ela oferecendo-lhe a face.
-Não sabes que dia é hoje?
-Oh. Claro.
O casal ficou a abraçar-se no pé-direito duplo da entrada. Depois o marido, com um movimento do braço, fez tilintar as chaves no bolso. A sua intenção semiconsciente foi mostrar impaciência por sair. Xan não concordaria publicamente, mas as mulheres gostam, por natureza, de prolongar as rotinas de partida. É o reverso do seu gosto por deixar pessoas à espera. Os homens não deviam importar-se com isso. Ser deixado à espera é uma compensação moderada pelos seus cinco milhões de anos no poder… Xan suspira agora baixinho e mais acima baixinho rangem escadas. Descia uma figura complexa, normal até à cintura mas com duas cabeças e quatro braços: a filha mais pequena de Meo, Sophie, colada ao flanco de Imaculada, a sua ama brasileira. Por trás delas, a uma distância ao mesmo tempo sonhadora e auto-suficiente, espreitava a de quatro anos, Billie.
1ª Página do livro, O Cão Amarelo, de Martin Amis, Editorial Teorema, 1ª edição, Agosto de 2004.

Nota: Martin Amis nasceu em Oxford, Inglaterra, a 25 de Agosto de 1949. Filho do escritor Kingsley Amis, autor vencedor de um Booker Prize.
Amis passou grande parte da sua juventude em Swansea, onde o seu pai leccionava. Mais tarde passou um ano em Princeton, antes de regressar a Inglaterra e depois em Cambridge. Aos 12 anos, depois do divórcio dos seus pais, Amis passou o ano seguinte na Ilha de Maiorca, Espanha, com a sua mãe e irmãos.
No anos seguinte regressou a Inglaterra, onde recebeu um papel para o filme A High Wind in Jamaica, ficando impedido de regressar à escola. Depois de a madrasta, a romancista Elizabeth Jane Howard, o introduzir às obras de Jane Austen, começou a preparar os requisitos de admissão para a Universidade de Oxford.
Em 1971, licenciou-se em Inglês com lugar no quadro de honra. Em 1971, recebeu uma proposta para crítico literário para o jornal London Observer e, nos oito anos seguintes, ocupou cargos editoriais em jornais como London Times Literary Supplement, New Statesman e London Observer, onde ocupou uma posição de escritor a partir de 1980.
Em 1980, depois de publicar três romances e vendido um argumento, Amis demitiu-se da sua posição editorial no New Statesman para escrever a tempo inteiro, apesar de continuar a publicar não-ficção em Inglaterra e América, incluindo críticas no Observer, The London Review of Books e New York Times Book Review.
As suas obras caracterizam-se pelo seu acerbado humor negro, incluindo-se entre elas The Rachel Papers (1973), um livro de memórias da adolescência contadas através de flashbacks, Dead Babies (1975), que trata a decadência e o sadismo, Money (1984), London Fields (1989), Time’s Arrow (1991), um romance muito apreciado que fala sobre os campos de morte nazis, Água Pesada (1999) e Experiência (2000), uma autobiografia do escritor, The War Against Cliché (2001), Koba o Terrível (2002), On Modern British Fiction (2002), O Cão Amarelo (2003), Vintage Amis (2003), House of Meetings (2006) e The Pregnant Widow (2007).
Recebeu os prémios: Somerset Maugham Award (1974) pela obra The Rachel Papers e James Tait Black Memorial Prize (para biografia) (2000) pela obra Experiência. (Fontes:Wikipédia e Biblioteca Universal).

segunda-feira, maio 26, 2008

A Estrada


Quando acordava nos bosques, na escuridão e no frio, estendia a mão para tocar na criança que dormia a seu lado. Noites de trevas mais densas do que as próprias trevas e cada dia mais cinzento do que anterior. Como os primórdios de um glaucoma frio a obscurecer o mundo. A mão subia e descia suavemente a cada fôlego precioso. Afastou o oleado de tela plástica e soergueu-se sob as vestes e cobertores malcheirosos e olhou para leste em busca de qualquer luz, mas nada viu. No sonho de que despertara tinha penetrado numa gruta onde a criança o conduzira pela mão. A luz que traziam brincava sobre as paredes húmidas de calcário ali depositado pelo escorrer da água. Como peregrinos numa fábula, engolidos por um monstro granítico em cujas entranhas se haviam perdido. Fundos canais de pedra onde a água gotejava melodiosamente, como sinos a dobrar no silencia para assinalar os minutos da terra e as horas e os dias da terra e os anos incessantes. Até que chegaram a uma grande sala de pedra onde havia um lado negro e antiquíssimo e, na margem oposta, uma criatura que ergueu a boca gotejante do rebordo calcário e fitou a luz com olhos brancos e sem vida e cegos como ovos de aranha. O animal baixou a cabeça sobre a água e agitou-a, como que a farejar o que não conseguia ver. Ali agachado, pálido e nu e translúcido, com os ossos de alabastro projectados em sombras nas rochas atrás de si. As vísceras, o coração a bater. O cérebro que pulsava numa campânula de vidro baço. Agitou a cabeça para um lado e para o outro e depois soltou um gemido surdo e deu meia volta e afastou-se em passo trôpego até se eclipsar nas trevas sem ruído.
Com a primeira luz cinzenta ele levantou-se e deixou o rapaz a dormir e caminhou até à estrada e acocorou-se e perscrutou a paisagem que se estendia para sul. Estéril, silenciosa, maléfica. Parecia-lhe que estavam no mês de Outubro, mas não tinha a certeza. Há anos que deixaram de contar os dias por um calendário. Iam para sul. Nunca conseguiriam sobreviver a outro Inverno naquele lugar.
1ª Página do livro, A Estrada, de Cormac McCarthy, Relógio D’Água Editores, Março 2007, sem número de edição.

Nota:Num mundo pós-nuclear, Cormac McCarthy, narra-nos a história de sobrevivência de um pai e de um filho através da América, numa linguagem crua e despojada de qualquer romantismo para com a humanidade.
Segundo o Jornal inglês, The Observer, deveremos ler o livro como “uma meditação sobre a morte”: a morte individual e num sentido mais lato, a meditação sobre o fim apocalíptico da humanidade. Com este romance, Cormac McCarthy arrecadou o Prémio Pulitzer de 2007.
Cormac McCarthy nasceu em Rhode Island, a 20 de Julho de 1933. Na juventude, serviu à Força Aérea dos Estados Unidos durante quatro anos, e estudou Artes na Universidade do Tennessee. Em 40 anos de carreira literária, editou nove romances, entre eles, O Filho de Deus, Meridiano de Sangue, Este País Não é Para Velhos e este, A Estrada.
O escritor é considerado nos últimos anos como um dos grandes nomes do romance contemporâneo norte-americano, ao lado de nomes, como Don DeLillo, Philip Roth e Thomas Pynchon.

sexta-feira, maio 23, 2008

Alá Não É Obrigado


Decido o título definitivo e completo do meu blablabla que é Alá não é obrigado a ser justo em todas as coisas desta Terra. E pronto. Começo a contar as minhas baboseiras.
E, para começar…e um…Chamo-me Birahima. Sou um p’tit négre. Não por ser black e miúdo. Não! Sou p’tit négre porque falo mal francês. É assim. Mesmo quando se é grande, mesmo velho, mesmo árabe, chinês, branco, russo, mesmo americano; quando se fala mal francês diz-se sempre que se fala p’tit négre. Isso é a lei do francês de todos os dias que assim decreta.
…E dois… A minha escola não foi lá muito longe; cortei com o curso elementar dois. Deixei o banco porque toda a gente diz que a escola não vale nada, nem sequer o peido de uma avó velha (é assim que se diz em preto negro africano indígena quando uma coisa não vale nada. Diz-se que não vale o peido de uma avó velha porque o peido da avó lixada e magricela não faz barulho e não cheira assim muito, muito mal). A escola não vale o peido da avó porque, mesmo com o diploma da universidade, não se consegue ser enfermeiro ou professor primário em nenhuma das repúblicas bananeiras corrompidas da África francófona. (República bananeira quer dizer aparentemente democrática mas, na verdade, governada por interesses privados, pela corrupção.) Mas mesmo frequentar o curso elementar dois não é forçosamente autónomo e mirífico. Fica-se a saber alguma coisa, mas não o suficiente; ficamos a parecer-nos com aquilo a que os pretos negros africanos indígenas chamam uma panqueca tostada dos dois lados. Já não somos aldeões, selvagens como os outros pretos negros africanos indígenas: ouvimos e compreendemos os negros civilizados e os toubabs, tirando os ingleses e os americanos pretos da Libéria. Mas ignoramos geografia, gramática, conjugações, divisões e redacção; não conseguimos ganhar o dinheiro facilmente como agente do Estado numa república lixada e corrompida, como a Guiné, a Costa do Marfim, etc., etc.
…E três…sou insolente, incorrecto como a barba de bode e falo como um sacanete. Não digo, como os pretos negros africanos indígenas muito engravatados: merda! Raios! Safado! Sirvo-me de palavras malinké, como faforo! (Faforo quer dizer sexo do meu pai ou do pai ou do teu pai). Como gnamokodé! (Gnamokodé quer dizer bastardo ou bastardia). Como Walahé! (Walahé quer dizer em nome de Alá.) Os Malinkés é a minha raça. É o tipo de pretos negros africanos indígenas que são numerosos no Norte da Costa do Marfim, na Guiné e noutras repúblicas bananeiras e lixadas como a Gâmbia, a Serra Leoa e o Senegal lá longe, etc.
1ª Página do livro, Alá não é obrigado, de Ahmadou Kouroma, ASA Editores, 1ª edição, Setembro de 2004.

NOTA:Neste livro, Ahmadou Kouroma (Costa do Marfim 1927 – França 2003) , narra-nos pela boca de uma criança de onze anos, o menino soldado Birahima, a terrível realidade que assola o continente africano: as alianças entre chefes de Estado e o mundo do crime, a corrupção generalizada, as dificuldades nas Nações Unidas actuarem no terreno, os desvios das ajudas humanitárias enviadas pelas organizações não governamentais, e a terrível situação dos meninos soldados.
O número de crianças a participar directamente em combate é difícil de quantificar, mas segundo a organização não governamental britânica Human Rights Watch, existem entre 200 mil e 300 mil meninos soldados, que participam actualmente em guerras em 21 países em todo o mundo. Metade destes meninos soldados encontram-se em África, onde lutam mais de 100 mil crianças, mas também podem ser encontrados, na guerrilha maoísta do Nepal, no grupo terrorista Farc, na Colômbia, na Palestina, no Sudão ou no Mianmar, onde o recrutamento é legal a partir dos 12 anos.
A imagem tipicamente africana do menino com uma Kalashnikov nas mãos, que se encontra na capa do livro, não é representativa de todos os meninos soldados. Muitos dos meninos soldados, fazem o trabalho que militarmente é destinado à companhia de serviços, como cozinhar, lavar etc. Outros são usados como escravos sexuais, não havendo distinção no sexo. Outros ainda servem para fazer a desminagem de campos de minas ou para os minar. Segundo números da Organização das Nações Unidas, desde de 1987, cerca de dois milhões de crianças morreram em combate e este número não inclui, os mortos da guerra Irão/Iraque, que no seu final, era mantida principalmente por adolescentes. Assiste-se actualmente a uma grande pressão internacional, por parte de algumas organizações não governamentais, para terminar com a prática de recrutar meninos soldados, mas este movimento, está apenas no princípio.

terça-feira, maio 20, 2008

Ácido Sulfúrico


Chegou o momento em que já não lhes bastava o sofrimento dos outros; precisavam de assistir ao espectáculo.
Para se ser preso, não era necessária nenhuma qualificação. As rusgas produziam-se por toda a parte: levavam toda a gente, sem possibilidades de derrogação. O único critério era tratar-se de um ser humano.
Naquela manhã, Pannonique fora passear ao Jardim dês Plantes. Chegaram os organizadores e passaram o parque a pente fino. A jovem deu consigo num camião.
Foi antes da primeira emissão: as pessoas ainda não sabiam o que ia acontecer-lhes. Indignavam-se. Na estação de caminhos-de-ferro, comprimiram-nas dentro de um vagão para animais. Pannonique viu que estavam a ser filmados: iam escoltados por várias câmaras que não perdiam pitada da angústia dos prisioneiros.
A rapariga compreendeu então que não lhe serviria de nada revoltar-se, mas seria telegénico. Permaneceu, portanto, impassível durante a longa viagem. À sua volta, crianças choravam, adultos vociferavam, velhos sufocavam.
Desembarcaram-nos num campo semelhante aos de deportação nazi, afinal não muito antigos, com uma notória diferença: havia câmaras de vigilância instaladas por toda a parte.

Não era necessária nenhuma qualificação para ser organizador. Os chefes mandavam desfilar os candidatos e seleccionavam os que apresentavam “os semblantes mais significativos”. Em seguida, tinham de responder a questionários sobre comportamento.
Zdena, que nunca na vida ficara aprovada num exame, foi aceite. Daí nasceu um grande orgulho. Doravante, poderia dizer que trabalhava na televisão. Aos vinte anos, sem estudos, um primeiro emprego: os seus familiares iam finalmente deixar de escarnecer dela.
Explicaram-lhe os princípios da emissão. Os responsáveis perguntaram-lhe se a chocavam:
-Não. É intenso – respondeu ela.
Pensativo, o caça-talentos disse-lhe que era exactamente assim.
-É o que as pessoas querem - acrescentou ele. – Acabou-se o estilo amaneirado, afectado.
A rapariga submeteu-se a outros testes nos quais provou ser capaz de agredir desconhecidos, gritar insultos gratuitos, impor a autoridade, não se deixar impressionar por lamúrias.
- O que conta é o respeito do público – declarou um responsável.
- Nenhum espectador merece o nosso desprezo.
Zdena concordou.
Foi-lhe atribuído o posto de kapo.
- Chamar-lhe-ão kapo Zdena – disseram-lhe.
Agradou-lhe o termo militar.
- Tens jeito, kapo Zdena – reconheceu ela perante o seu reflexo no espelho.
Já nem se apercebia de que estava sempre a ser filmada.

Os jornais já só falavam deste assunto. Os editoriais inflamaram-se, as boas consciências indignaram-se.
O público, esse, pediu que lhe dessem mais do mesmo, logo após a primeira emissão. O programa, que se chamava sobriamente Concentração, atingiu recordes de audiência. Nunca se vira o horror de forma tão directa.
1ª Página (um pouco mais) do livro Ácido Sulfúrico, de Amélie Nothomb, Edições ASA, 1ª edição Maio de 2007.
Nota: O livro de Nothomb parte da criação de um novo reality show, Concentração, o qual reproduz as condições que se vivia nos campos de concentração nazistas, onde impera a violência gratuita, os maus-tratos, a fome, os trabalhos forçados e a desumanizaço dos concorrentes, excepto, que por todo o lado estão instaladas câmaras de televisão, que transmitem todas as cenas, para um público interessado na violência kafkiana.
Os concorrentes forçados deste reality show são encontrados nas ruas de Paris e daí conduzidos em vagões para animais para o estúdio que, reproduz as condições de campo de concentração. A ordem no campo de concentração é mantida por kapos, escolhidos entre os mais imbecis e ineptos da sociedade.
O programa alcança instantaneamente um sucesso sem precedentes na televisão e atinge o seu clímax semanalmente, quando os telespectadores usam o televoto, para decidirem, qual dos concorrentes deve ser executado sumariamente.
A escritora belga Amélie Nothomb criou neste livro uma sátira violenta às degradantes tendências televisivas actuais, especialmente ao telelixo dos reality shows e também, um ataque a uma sociedade, em que o sofrimento extremo é reconvertido num espectáculo de sucesso. A nossa sociedade.

segunda-feira, maio 19, 2008

uma segunda juventude


ELE OUVIU TOCAR OS SINOS DA MITROPOLIE e então lembrou-se de que era noite de Páscoa. E subitamente a chuva, aquela chuva sob a qual ele andava desde que saíra da estação de comboios e que ameaçava tornar-se torrencial, pareceu-lhe normal. Ele avançava num passo rápido, abrigado debaixo do seu guarda-chuva, com as costas curvadas e os olhos baixos, tentando não se molhar demasiado. Depois, mesmo sem se dar conta, começou a correr, com o guarda-chuva diante do peito, como um escudo. Teve, porém, de parar vinte metros mais à frente, no sinal vermelho. Enquanto esperava, saltitava nervoso, punha-se na ponta dos pés, mudava de lugar, observava consternado as poças que, a alguns passos dele, cobriam uma boa parte da avenida. O sinal vermelho apagou-se e, um segundo mais tarde, a explosão de luz branca, incandescente, agitava-o brutalmente, cegava-o. Como se um ciclone abrasador explodisse, de uma forma incompreensível, no cimo da sua cabeça e a aspirasse. “O relâmpago não caiu muito longe”, disse para si próprio piscando penosamente os olhos a fim de descolar as pálpebras. Ele não compreendia por que razão segurava com tanta força o cabo do guarda-chuva. A chuva redobrava de violência, assaltava-o por todos os lados e, no entanto, ele não sentia nada. Ouviu de novo os sinos da Mitropolie, e depois os de todas as outras igrejas, e, muito próximo, um carrilhão solitário e desolado. “Tive medo!”, pensou. Ele tremia. “É por causa da água”, disse para consigo alguns instantes mais tarde ao aperceber-se de que estava caído no chão, na valeta. “Estou a apanhar frio…”
Então ouviu aquela voz ofegante, uma voz de homem aterrorizado:
- Eu estava lá quando o relâmpago o atingiu. Não sei se ainda está vivo. Eu olhava precisamente para onde ele estava, na borda do passeio, e vi-o pegar fogo da cabeça aos pés, e começou tudo a arder ao mesmo tempo: o guarda-chuva, o chapéu, as roupas. Se não fosse a chuva, ele teria ardido como uma tocha… Não sei se ainda estará vivo – repetiu.
1ª Página do livro, uma segunda juventude, de Mircea Eliade, Bico de Pena, 1ª edição Março de 2008.
Nota: Uma Segunda Juventude, conta-nos a história de Dominic Matei, um respeitado académico, professor de linguística, filósofo e historiador com 70 anos. Apesar do seu sucesso académico, é um homem infeliz e amargurado com a vida, por ter perdido o seu grande amor, Laura, devido á investigação académica. Este desespero leva-o a encetar uma viagem a Bucareste com o intuito de se suicidar.
Contudo, uma dramática e incrível fatalidade, ocorre quando ele é, fulminado por um relâmpago e sobrevive miraculosamente
No hospital, enquanto recupera, os médicos assistem com incredibilidade ao rejuvenescimento físico do professor, acompanhado por um desenvolvimento intelectual inexplicável que chama a atenção de cientistas nazis, obrigando o professor a exilar-se. Em fuga, Matei reencontra Laura, o seu amor perdido, reencarnada como Veronica e luta para terminar a sua tese sobre as origens da linguagem humana. Mas quando a sua pesquisa ameaça a existência de Veronica, Matei é forçado a escolher entre o trabalho de uma vida ou o seu grande amor.

domingo, maio 18, 2008

Asfixia


Se vais ler isto, não te maces.
Ao fim de um par de páginas, não vais querer estar aqui. Por isso, esquece. Sai enquanto ainda estás inteiro.
Salva-te.
Tem de haver qualquer coisa melhor na televisão. Ou, uma vez que tens tanto tempo livre, talvez pudesses tirar um curso à noite. Tornares-te médico. Podias fazer qualquer coisa boa para ti. Oferecer a ti próprio um jantar fora. Pintar o cabelo.
Não estás a ficar mais jovem.
O que acontece aqui, primeiro, vai chatear-te. Depois, vai ficando cada vez pior.
O que vais ter aqui é uma história estúpida sobre um rapazinho estúpido. Uma estúpida história verdadeira sobre ninguém que alguma vez te tenha apetecido conhecer. Imagina este idiotazinho que te deve dar pela cintura, com uma mão-cheia de cabelo louro, penteado com risco ao lado. Imagina o pieguinhas do pequeno merdoso nas fotografias antigas da escola, sem alguns dos dentes de leite e com os primeiros dentes de adulto a nascerem tortos. Imagina-o vestido com uma estúpida camisola às riscas azuis e amarelas, uma camisola que tinha sido prenda de anos e era a sua preferida. Mesmo assim tão novinho, imagina-o a roer as imbecis das unhas dos dedos. Os sapatos preferidos são Keds. A comida preferida, aquela porra das salsichas fritas.
Imagina um rapazinho sebento com cinto de segurança posto, sentado numa carrinha escolar ao lado da mamã depois do jantar. Só que está num carro da polícia parado à frente do motel deles e, por isso a mamã carrega no acelerador e continua a cem ou cento e dez quilómetros hora.
Isto é sobre um estúpido de um fuinhazinho que, podes ter a certeza, era o mais estúpido dos sabujinhos imbecis e choramingas que alguma vez existiu.
Um mariquinhas.
1ª Página do livro, Asfixia, de Chuck Palahniuk, Editorial notícias, 1ª edição Outubro de 2003.
Nota: Chuck Palahniuk emergiu nos anos noventa do século passado, como uma das vozes mais originais da moderna literatura americana. Nascido em Pasco, Washington, a 21 de Fevereiro de 1962, vive actualmente em Portland, Oregon, nos Estados Unidos. De descendência francesa e russa, Chuck Palahniuk teve uma vida mais insólita, que os personagens dos seus livros. Quando era adolescente o seu avô suicidou-se, após matar a mulher. Por sua vez, o seu foi assassinado juntamente com a namorada, pelo ex. marido desta. Estes acontecimentos trágicos serão um leit motiv, para o humor negro de Palahniuk, transversal em toda a sua obra. Licenciado pela Universidade de Oregon, tentou uma carreira jornalística, sem êxito. Como alternativa, foi sucessivamente artista rap, sem êxito, lutador, sem êxito e finalmente mecânico numa empresa de montagem de automóveis, sem êxito. A frustração nascida de um trabalho pouco atraente terá estado na origem do seu primeiro romance, Clube de Combate (1996). Com ele arrebatou vários prémios literários sendo o livro adaptado ao cinema por David Fincher, com Brad pitt, Edward Norton e Helena Bonham Carter nos principais papéis. O livro e o filme, criaram o culto Palahniuk. Seguiram-se, entre outros, títulos como Sobrevivente (1999), Monstros Invisíveis (1999), Asfixia (2001), Lullaby (2002).
Palahniuk denuncia com humor corrosivo a sociedade moderna, centrando a sua ironia, no consumo desenfreado e no excesso de informação. A capacidade de radiografar a sociedade actual, especialmente a americana, com uma prosa nua e crua, sem qualquer tipo de floreados, faz com que a cada edição de um novo livro, a legião de fãs da obra de Palahniuk, não pare de crescer.

sábado, maio 17, 2008

Sábado


Algumas horas antes do nascer do dia, Henry Perowne, neurocirurgião, acorda e começa imediatamente a mexer-se: senta-se, afasta a roupa e depois põe-se de pé. Não é claro para ele em que momento ficou consciente, nem isso lhe parece relevante. Aquilo nunca lhe acontecera, mas não se sente alarmado nem sequer levemente surpreendido, pois o movimento é fácil, agradável para os seus membros, e sente uma força rara nas costas e nas pernas, Está de pé ao lado da cama, nu – dorme sempre nu -, consciente da sua altura, da respiração paciente da sua mulher e do ar frio do quarto na sua pele. Também essa sensação lhe dá prazer. Na mesa de cabeceira, o relógio mostra que são três e quarenta. Não faz a menor ideia do que está a fazer fora da cama: não precisa de ir à casa de banho, não foi perturbado por nenhum sonho nem por qualquer acontecimento do dia anterior, nem sequer pelo estado do mundo. É como se, ali de pá, na escuridão, se tivesse materializado do nada, inteiramente formado, sem qualquer limitação. Não se sente cansado, apesar da hora e do muito que tem trabalhado ultimamente, nem há qualquer caso recente que lhe perturbe a consciência. Na verdade, está bem desperto, com a cabeça vazia e inusitadamente alegre. Sem que isso corresponda a qualquer decisão ou motivação, começa a dirigir-se para a mais próxima das três janelas do quarto, e a facilidade e leveza com que caminha leva-o mais uma vez a suspeitar que está a dormir ou a ter um ataque de sonambulismo. Se for verdade, ficará desapontado. Os sonhos não lhe interessam; a possibilidade de tudo aquilo ser real é muito mais rica. Além disso, tem a certeza de que está absolutamente consciente e sabe que o sono já ficou para trás: reconhecer a diferença entre estar a dormir e acordado, reconhecer as fronteiras, é a essência da sanidade.
1ª Página do livro, Sábado, de Ian McEwan, Gradiva, 1ªedição Maio 2005.
O livro Sábado é a obra joyceana de Ian McEwan. A acção do livro decorre num único dia, Sábado, 15 de Fevereiro de 2003. Henry Perowne é um homem realizado — um neurocirurgião de sucesso, marido dedicado de Rosalind, uma advogada que trabalha num jornal, e pai orgulhoso de dois filhos já crescidos, uma promissora poetisa e um talentoso músico de blues. Ao contrário do que é habitual, acorda antes do nascer do dia, é atraído para a janela do seu quarto e dominado por uma sensação crescente de mal-estar. O que o perturba ao olhar para o céu é o estado do mundo — a guerra iminente com o Iraque, um pessimismo que não pára de crescer nele desde o 11 de Setembro, e o medo de que a sua feliz vida familiar e a sua cidade, com a abertura e diversidade que a caracterizam, estejam ameaçadas. Mais tarde, Perowne dirige-se para o seu jogo semanal de squash atravessando as ruas de Londres onde centenas de milhares de pessoas se manifestam contra a guerra. Um pequeno acidente de automóvel fá-lo entrar em confronto com Baxter, um jovem nervoso, agressivo, a raiar a violência. A experiência profissional de Perowne sugere-lhe que há qualquer coisa de profundamente errado naquele indivíduo. Quase ao fim de um dia repleto de incidentes, mas em que Perowne celebrou todos os prazeres da vida — música, comida, amor, a excitação do desporto e a satisfação de um trabalho bem feito — a sua família reúne-se para jantar. Mas, com o súbito aparecimento de Baxter, os receios iniciais de Perowne parecem prestes a materializar-se. Fonte:Gradiva
Ian McEwan nasceu a 21 de Junho de 1948 em Aldershot, Inglaterra mas passou grande parte da sua infância na Ásia, devido à profissão de militar exercida pelo pai. Estudou na Universidade de Sussex onde se licenciou em Literatura Inglesa. Posteriormente tirou um curso de escrita criativa com os escritores Malcolm Bradbury e Angie Wilson.
Começou a escrever contos no início da década de 1970 para publicações de índole literária, como a American Review e a Transatlantic Review. Em 1976, McEwan viu o seu talento reconhecido com a atribuição do prémio Somerset Maugham pelos oitos contos que compuseram a sua primeira obra: Primeiro Amor, Últimos Ritos. O autor ainda publicou mais um livro de contos, Entre os lençóis (1978), antes de iniciar a sua carreira como romancista.
As suas obras distinguem-se pelas sugestões sinistras ou macabras e pelos elementos de violência e sexualidade bizarra, como acontece nos contos de Primeiro Amor, Últimos Ritos (1975).
Da sua obra como romancista fazem parte os romances O Jardim de Cimento (1978), A Criança no Tempo (1987), O Inocente (1990), O Sonhador (1994), O Fardo do Amor (1997), Amesterdão (1998), Expiação (2001) e Sábado (2005) e Na Praia de Chesil (2007).
Em 1998, foi-lhe atribuído o Booker Prize pela obra Amesterdão, cuja acção se desenrola a partir da morte súbita de Molly Lane, fotógrafa profissional quadragenária. A sua escrita retrata os homens comuns, sem emoção, piedade ou julgamento.
Em 2001, foi lançado Expiação, um romance que fala do solitário ofício de imaginação da escrita e que foi distinguido pelo The National Book Critics Circle com o prémio de melhor livro de ficção de 2002.
Em 2005 editou Sábado e dois anos depois, foi novamente finalista do Booker Prize, a sua quinta vez, com o romance "Na Praia de Chesil", acabando por perder o galardão para a escritora irlandesa Anne Enright.

quarta-feira, maio 14, 2008

O Triunfo dos Porcos


O Sr. Jones, da Quinta Manor, tinha trancado os galinheiros, mas estava demasiado bêbado para se lembrar de fechar os postigos. Como o círculo de luz da lanterna dançando de um lado para o outro, atravessou o pátio aos tombos, livrou-se das botas na porta das traseiras, serviu-se de um último copo de cerveja do barril da copa e subiu para o quarto, onde a Srª Jones já ressonava.
Assim que a luz do quarto se apagou, houve agitação e alvoroço em todas as divisões da quinta. Constara, durante o dia, que o velho Major, o premiado porco “Middle White”, tivera um estranho sonho na noite anterior e desejava transmiti-lo aos outros animais. Ficara acordado reunirem-se todos no celeiro grande, logo que estivessem livres do Sr. Jones. O velho Major (como sempre lhe chamavam, embora o nome com que fora exibido fosse Beleza de Willingdon) era tão respeitado na quinta que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono para ouvirem o que ele tinha a dizer.
1ª Página do livro, O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, Publicações Europa-América, 2ª edição.
Nota. Publicado pela primeira vez em 1945, O Triunfo dos Porcos, é um livro sempre actual. O mandamento, Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que outros, não podia ser mais actual.

segunda-feira, maio 12, 2008

Os Filhos da Meia-Noite


Nasci na cidade de Bombaim…um certo dia. Não, não pode ser assim. A data exacta. Nasci na maternidade do Dr. Narlikar no dia 15 de Agosto de 1947. Horas? A hora também é importante. Pois seja: foi de noite. Não, procuremos ser mais…Foi exactamente ao bater da meia-noite. Os ponteiros do relógio uniram as palmas das mãos para me cumprimentarem respeitosamente e me darem as boas-vindas. Há que dizer tudo: fui dado à luz no exacto momento em que a Índia se tornava independente. Continha-se a respiração. Do lado de fora da janela misturava-se o estralejar do fogo-de-artifício com a algazarra da multidão. Poucos segundos depois, o meu pai fracturou o dedo grande do pé; acidente insignificante em comparação com aquilo que me acontecia a mim naquele momento da noite; graças à tirania oculta dos relógios delicadamente acolhedores, eu passava a estar misteriosamente ligado à história e o meu destino indissoluvelmente unido ao meu país. Durante as três décadas seguintes, ser-me-ia impossível escapar. A minha chegada tinha sido profetizada pelos adivinhos, celebraram-na os jornais, os políticos ratificaram a minha autenticidade. Não me foi consentido qualquer voto na matéria. Eu, Saleem Sinai, mas tarde chamado também Muco-na-Penca, Cara-Manchada, Careca, Sorve-Ranho, Buda e até Pedaço-de-Lua, fiquei definitivamente comprometido com o destino…as mais das vezes perigosamente amarrado a esse compromisso. E nessas alturas não tinha quaisquer possibilidades de me assoar.
Entretanto, o tempo (uma vez que não sei o que fazer de mim) está agora a chegar ao seu termo. Completarei em breve trinta e um anos. Se calhar. Se este meu corpo velho e escangalhado o permitir. Mas não me restam grandes esperanças de me salvar, não tenho pela frente sequer mil noites e uma noite. Tenho de ser rápido, mais rápido do que Xerazade, e é se quero deixar claro o sentido… Sim, o sentido. Não há nada que eu receie mais do que o absurdo.
E tenho tantas, tantas histórias para contar, são tantas vidas acontecimentos milagres lugares rumores que se entrelaçam, é tal a mistura de improvável e de mundano! Fui um devorador de vidas e para me conhecerem, só a mim, vão ter de engolir outras tantas. Em mim se cruzam e entrechocam multidões desaparecidas. Guiado apenas pela recordação dum enorme lençol branco, com um buraco vagamente circular de sete polegadas de diâmetro aberto no meio, amarrado ao sonho desse pano furado e mutilado que é o meu talismã, o meu abre-te, Sésamo, vou ter de reconstituir a história da minha vida a partir do momento em que ela efectivamente começou, aí uns trinta e dois anos antes de uma coisa tão óbvia e tão presente como foi o meu nascimento badalado pelos relógios e marcado pelo crime.
(O dito lençol, diga-se de passagem, está também manchado por três gotas de um vermelho velho e desmaiado. Como diz o Alcorão: Proclama em nome do Senhor teu Criador que fez o homem de um coágulo de sangue.)
1ª Página do livro, Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie, Editores Reunidos, 1994.
Nota: O romance “Os Filhos da Meia-Noite”, é o favorito a converter-se no melhor Prémio Booker da história deste galardão literário, que completa agora 40 anos e é o mais prestigioso do Reino Unido.
A lista de finalistas foi escolhida por um júri presidido pela biógrafa, romancista e crítica literária Victoria Glendinnir e composto pela escritora e apresentadora Mariella Frostrup e o catedrático John Mullan. O vencedor será anunciado a 10 de Julho, no marco do Festival de Literatura de Londres.
Os leitores têm até à meia-noite de 08 de Julho para votar,
na página web do prémio
, no melhor romance premiado com o Booker, concedido pela primeira vez em 22 de Abril de 1969.
Além do romance de Rushdie, premiado en 1981, figuram na lista de finalistas, agora divulgada, “The Ghost Road” (1995), de Pat Barker, “Óscar e Lucinda” (1988), de Peter Carey, “Desgraça” (1999), de JM Coetzee, “ O Conservador” (1974), de Nadine Gordimer, e “The Siege of Krishnapur” (1973), de JG Farrell.
Já quando se celebrou o vigésimo quinto aniversário do galardão, em 1993, o livro de Rushdie fora eleito o melhor “Booker Prize”. Hoje, 15 anos depois, as apostas na firma William Hill voltam a apontá-lo como favorito, seguido pelas obras Pat Barker, Peter Carey, JM Coetzee, Nadine Gordimer e JG Farrell.(Lusa).

domingo, maio 11, 2008

a um deus desconhecido


A UM DEUS DESCONHECIDO

Ele é que nos faz respirar e a força é dádiva Sua.
As altas divindades respeitam os Seus mandamentos.
A Sua sombra é Vida, a Sua sombra é Morte;
Quem é Ele. a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Apesar do Seu poder, tornou-se senhor da vida e do mundo resplandecente.
E governa o mundo, os homens e as bestas.
Quem é ele, a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Da Sua força as montanhas tomaram forma, e também o mar
E o distante rio;
Sãos esses o Seu corpo e os seus dois braços.
Quem é Ele, a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Fez o Céu e fez a Terra e, pela Sua vontade, ocuparam os seus lugares,
Contudo, olham-No e estremecem.
O Sol nascente brilha sob a Sua vontade.
Quem é Ele, a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Olhou sobre as águas que entesouraram o Seu poder e engendraram a imolação.
É o Deus dos Deuses.
Quem é Ele a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Que não nos fira Aquele que fez a Terra,
Que fez o Céu e o Mar reluzente?
Quem é o Deus a quem oferecemos sacrifícios?

Após o armazenamento das colheitas na quinta Wayne, próximo de Pittsford, no Vermont, quando a lenha para o Inverno estava cortada e a primeira fina camada de neve jazia no solo, Joseph Wayne foi ter com o pai, que se encontrava sentado na cadeira de costas altas, junto da lareira. Aqueles dois homens eram semelhantes. Ambos tinham grandes narizes e maças do rosto salientes; ambos os rostos pareciam feitos do mesmo material, mais duro e durável que a carne, uma substância semelhante à pedra, que não se altera com facilidade. A barba de Joseph era negra e sedosa, ainda suficientemente rala para que o esboço sombreado do queixo se visse através dela. A do velho era longa e branca. Cofiava-a aqui e ali, com dedos cautelosos, tornando-lhe as pontas para a proteger. Só passado um bocado deu pela presença do filho a seu lado. Ergueu os olhos velhos, conhecedores e plácidos olhos muito azuis. Os de Joseph eram também da mesma cor, mas orgulhosos e curiosos com a juventude. Agora que se encontrava junto do pai, hesitava comunicar-lhe a sua nova heresia.
Preâmbulo e 1º página do livro, A Um Deus Desconhecido, de John Steinbeck, editora Livros do Brasil.

sexta-feira, maio 09, 2008

Se Isto É Um Homem


SE ISTO É UM HOMEM

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repetias aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Fui capturado pela Milícia fascista a 13 de Dezembro de 1943. Tinha vinte e quatro anos, pouco bom senso, nenhuma experiência e uma acentuada inclinação, favorecida pelo regime de segregação ao qual desde há quatro anos fora obrigado pelas leis raciais, para viver num mundo só meu, pouco real, povoado por civilizados fantasmas cartesianos, por sinceras amizades masculinas e por amizades femininas evanescentes, Cultivava um moderado e abstracto sentido de rebelião.
Não fora fácil para mim escolher a via das montanhas e contribuir para pôr de pé a que, na minha opinião e de outros amigos pouco mais experientes do que eu, deveria transformar-se numa brigada de partigiani filiada no grupo “Giustizia e Libertá”. Faltavam-nos os contactos, as armas, o dinheiro e a experiência para os arranjar; faltavam os homens capazes e, pelo contrário, estávamos submersos por um dilúvio de pessoas desqualificadas, de boa e de má-fé, que chegavam até lá acima vindas da planície à procura de uma organização inexistente, de quadros, de armas, ou apenas de protecção, de um esconderijo, de uma fogueira, de um par de sapatos.
Naquele tempo, ainda ninguém me ensinara a doutrina que mais tarde havia de aprender rapidamente no Lager, segundo a qual a primeira tarefa do homem é tentar alcançar os seus objectivos com meios adequados, e quem errar, paga; por isso, não posso deixar de considerar justo o sucessivo desenrolar dos acontecimentos. Três centúrias da Milícia, partidas no meio da noite para surpreender outra brigada, bem mais potente e perigosa do que a nossa, aninhada no vale adjacente, irromperam numa espectral madrugada de neve no nosso refúgio e levaram-me para o vale como suspeito.
Preâmbulo e 1ª página, do livro, Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, Editorial Teorema, sem data de edição.

quinta-feira, maio 08, 2008

A Queda


Pelas três horas subiam ao céu negro umas bolas luminosas, submergindo a testa-de.ponte de Kustrin numa luz vermelho-brilhante. Após um momento de sufocante silêncio, começou o estrondo dos canhões, fazendo tremer as planícies do rio Oder muito além de Frankfurt. Como que movidas por uma mão fantasma, as sirenes começaram a entoar, ouvindo-se nalguns sítios até Berlim, os telefones gritavam e os livros caíam das prateleiras. Com vinte exércitos e dois milhões e meio de soldados, mais de quarenta mil lançadores de granadas e peças de campanha, como também centenas de lança-foguetes do tipo Katyusha, com trezentos projécteis por quilómetro, o Exército Vermelho abria a batalha naquele dia 16 de Abril de 1945…
1ª Página do livro, A Queda, Hitler E O Fim do Terceiro Reich, de Joachim Fest, Guerra e Paz Editores, 1ª edição 2007.
Nota: Na realidade não é a primeira página do livro, é apenas meia-página. Mas como repararam o livro não é ficção e tem tudo a ver com a fotografia abaixo publicada.
Esta obra do jornalista e historiador Joachim Fest, serviu de inspiração ao filme homónimo, estreado em 2004.
Joachim Fest ganhou notoriedade em 1973, quando lançou a biografia sobre Hitler, “Hitler. Eine Biografie” (“Hitler. Uma biografia”), considerada ainda hoje a principal obra de referência sobre o ditador.
Um mês antes de morrer (11 de Setembro de 2006) Joachim Fest, não poupou críticas a Gunter Grass, a quem classificou de uma "estridente mentira de vida" e de falso moralista, pela revelação que este fez no seu livro autobiográfico “Descascando a Cebola”, (que seria editado já depois da morte do historiador), de que teria pertencido à força nazista Waffen- SS. "A confissão chega tarde, sobretudo vinda de alguém que durante décadas se apresentou como a instância moral do país" sublinha Joachim Fest. "Grass sempre foi impiedoso quando se tratava de erros da juventude. Eu e muitos camaradas de escola fomos voluntários para a Wehrmacht porque sabíamos que assim evitaríamos acabar nas Waffen-SS", declarou.