Dá-me um café duplo, meu irmão.
Durante dezoito anos o seu espírito repetiu tantas vezes aquela frase, que as palavras acabaram por perder o significado na memória e no paladar, para soarem vazias, como uma palavra de ordem dita num idioma incompreensível. Porque, apesar do esquecimento que tentou impor a si próprio como a melhor alternativa, Fernando Terry sofreu demasiadas vezes aquelas rebeliões imprevisíveis da consciência e, com uma assiduidade incontrolável, dedicou alguns pensamentos ao que desejara sentir no preciso momento em que, depois de beber um café duplo em frente ao cabaret Las Vegas, acendesse um cigarro para atravessar a calle Infanta e descer pela Veinticinco, disposto a reencontrar-se com o melhor e com o pior do seu passado. Da melancolia ao ódio, da alegria à indiferença, do rancor ao alívio, nas suas viagens imaginárias Fernando tinha jogado com todas as cartas da nostalgia, sem pressentir que na manga escura, escondida, podia permanecer aquela tristeza agressiva que se lhe tinha cravado na alma, com uma interrogação: tinhas de voltar?
No início do seu exílio, durante os meses de incerteza vividos numa tenda asfixiante nos jardins do Orange Bowl de Miami, sem saber ainda se obteria a autorização de residência nos Estados Unidos, Fernando tinha começado a pensar num regresso curto mas necessário, que o ajudasse a estancar as feridas ainda sangrentas provocadas por uma traição demolidora e talvez, quem sabe, a curar a sensação vertiginosa de se achar descentrado, foro do tempo e do espaço. Depôs, com o passar dos anos e a persistência da barreira de leis e mediadas que dificultavam qualquer regresso, tinha tratado de se convencer de que o esquecimento era possível, de que podia acabar por ser o melhor dos remédios. Pouco a pouco começou a sentir o seu alívio benéfico e a ânsia do regresso foi-se diluindo até se transformar numa angústia adormecida que, astuciosamente, vinha à tona nalgumas noites insubornáveis quando, na solidão do seu sótão madrileno, o seu cérebro insistia em evocar algum instante dos seus trinta anos vividos na ilha.
1ª Página do livro, O Romance Da Minha Viva, de Leonardo Padura, Asa Editores, 1ª edição, Fevereiro de 2005.
Durante dezoito anos o seu espírito repetiu tantas vezes aquela frase, que as palavras acabaram por perder o significado na memória e no paladar, para soarem vazias, como uma palavra de ordem dita num idioma incompreensível. Porque, apesar do esquecimento que tentou impor a si próprio como a melhor alternativa, Fernando Terry sofreu demasiadas vezes aquelas rebeliões imprevisíveis da consciência e, com uma assiduidade incontrolável, dedicou alguns pensamentos ao que desejara sentir no preciso momento em que, depois de beber um café duplo em frente ao cabaret Las Vegas, acendesse um cigarro para atravessar a calle Infanta e descer pela Veinticinco, disposto a reencontrar-se com o melhor e com o pior do seu passado. Da melancolia ao ódio, da alegria à indiferença, do rancor ao alívio, nas suas viagens imaginárias Fernando tinha jogado com todas as cartas da nostalgia, sem pressentir que na manga escura, escondida, podia permanecer aquela tristeza agressiva que se lhe tinha cravado na alma, com uma interrogação: tinhas de voltar?
No início do seu exílio, durante os meses de incerteza vividos numa tenda asfixiante nos jardins do Orange Bowl de Miami, sem saber ainda se obteria a autorização de residência nos Estados Unidos, Fernando tinha começado a pensar num regresso curto mas necessário, que o ajudasse a estancar as feridas ainda sangrentas provocadas por uma traição demolidora e talvez, quem sabe, a curar a sensação vertiginosa de se achar descentrado, foro do tempo e do espaço. Depôs, com o passar dos anos e a persistência da barreira de leis e mediadas que dificultavam qualquer regresso, tinha tratado de se convencer de que o esquecimento era possível, de que podia acabar por ser o melhor dos remédios. Pouco a pouco começou a sentir o seu alívio benéfico e a ânsia do regresso foi-se diluindo até se transformar numa angústia adormecida que, astuciosamente, vinha à tona nalgumas noites insubornáveis quando, na solidão do seu sótão madrileno, o seu cérebro insistia em evocar algum instante dos seus trinta anos vividos na ilha.
1ª Página do livro, O Romance Da Minha Viva, de Leonardo Padura, Asa Editores, 1ª edição, Fevereiro de 2005.
Nota: Depois de dezoito anos de exílio, Fernando Terry decide voltar por algum tempo a Havana, atraído pela possibilidade de encontrar finalmente a autobiografia desaparecida do poeta José María Heredia, ao qual dedicou a sua tese de doutoramento. De passagem, terá oportunidade de esclarecer de uma vez por todas quem foi que o denunciou e provocou a sua expulsão da universidade. Paralelamente à história desse reencontro e à procura do almejado manuscrito, juntam-se, no plano narrativo, dois outros planos temporais: o da vida de Heredia, nos começos do século XIX, quando a ilha era ainda uma colónia, e o dos últimos dias do seu filho, José de Jesús de Heredia, um mação dos princípios do século XX.
Paulatinamente, as vidas dos vários personagens e as suas peripécias vão-se entretecendo em paralelismos inesperados, como se em Cuba a História se intrometesse sempre da mesma maneira no destino individual de todos aqueles que se destacam pelo seu talento: as delações, os exílios, as intrigas políticas acompanham sempre os criadores, seja qual for o período histórico em que lhes tenha caído em sorte viver.(Asa).
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