Se há coisas que me irritam para lá do normal, uma delas é o racismo. Não interessa a circunstâncias e principalmente quando o manifestam de forma ofensiva, publica e provocatoriamente, com o intuito de humilhar. Foi o que se passou com o Samuel Eto´o.
O insulto ao jogador sob a forma de ruídos simiescos, perpetrado pelos acéfalos adeptos do Saragoça, num comportamento resultante de uma espécie de estupidificação generalizada, levou-o ao desespero e, compreensivelmente, a ameaçar abandonar o jogo. Mesmo que as pessoas defendam aqui o direito à manifestação, neste caso nem sequer é a defesa de uma qualquer ideologia, mas uma forma desumana e baixa de provocar despropositadamente uma pessoa, não fazendo, por isso, qualquer espécie de sentido defender esta atitude com o recurso à liberdade de expressão, pois entramos no campo do insulto fácil e gratuito. Não acredito que todos os estivessem imbuídos num espírito racista mas, ao compactuarem com esta conduta, ainda são piores que os que o fizeram com convicção. Conheço casos de pessoas que abandonaram um local em sinal de protesto com a opinião do orador. Eu próprio já disse e fiz muita estupidez a este respeito. Todavia, nunca foi a minha intenção melindrar ninguém. Um dia apercebi-me que há coisas que não sendo ofensivas na essência, passam a sê-lo se tivermos em atenção à história da humanidade. O carácter ofensivo e pejorativo das palavras advém do facto de ainda estarem profundamente enraizadas na alma das pessoas as monstruosidades cometidas durante séculos. E que não se esquecem em tão pouco tempo. Esta percepção das coisas resultou de uma experiência insólita que até parece inverosímil. Um dia um amigo falou-me de um fenómeno emergente que estava a ser objecto de estudos, os alegados raptos de seres humanos por extraterrestres. Mostrei-me céptico e ele emprestou-me um livro chamado “Sequestros” escrito por Jonh Mack um psiquiatra de grande prestígio. Este livro mais não era que uma compilação de histórias dos seus pacientes que, sujeitos à terapia de hipnose regressiva, recordavam experiências profundamente dolorosas dos raptos alienígenas. De todos os relatos, e subjacente aos raptos, discutiam-se os sentimentos e o atroz sofrimento que aquelas experiências induziam. Eram tão avassaladoramente intensos, resultando do domínio absoluto sobre a vontade individual, conjugado com uma impotência para esboçar qualquer reacção, que era como se fossem ratos num labirinto, com a diferença que estes tinham consciência que o eram. Tentem abstrair-se e imaginar o que seria se fossemos nós a ser vítimas de uma desconcertante indiferença perante os nossos sentimentos, semelhantes aos perpetrados pelo médico nazi Mengel aos judeus indefesos.
Mesmo continuando a manter a minha posição de céptico sobre este assunto, fiz um exercício mental, mas partindo do pressuposto que era verdade. Conclui que continuava a ser uma hipótese remota, uma vez que qualquer civilização que cá chegasse seria incomparavelmente mais evoluída e, que se a evolução seguisse o mesmo caminho que na Terra, era incontornável o aparecimento de uma consciência colectiva, uma espécie de humanização da sua sociedade, o que invalidava o pressuposto inicial. Caso contrário, pensei eu na altura, configuraria um tipo de racismo, o que não faz o menor sentido para mentes desenvolvidas sadiamente. Foi então que me apercebi. Se pensarmos que o racismo tem a sua génese na escravatura, que mais não era que um domínio avassalador sobre a vontade do esclavagista sobre o escravo, sempre e inexoravelmente presente, que na ausência quer na presença do dominador, com a conivência dos poderes vigentes na altura, que elevava a impotência que eles sentiam a um nível que só quem passa pelo mesmo entende, facilmente se percebe o paralelismo.
A discussão feita pelo psiquiatra em torno dos sentimentos foi, por isso, reveladora, assim como a natural tendência para o ressentimento contra todos os que reavivem a memória, pelos seus actos, de situações profundamente marcantes. Este raciocínio nada elaborado levou-me a compreender este ressentimento e a evitar palavras que são susceptíveis de ferir sensibilidades. As atrocidades cometidas durante esses anos criaram clivagens que dificilmente serão esquecidas. A contínua humilhação de seres humanos e o sofrimento causado, levou a algumas demonstrações de grandeza em pequenos actos. Rosa Parks, foi uma das pessoas que o fez ao recusar ceder o seu lugar no autocarro. Mas não é só o que fica para a história que é digno de ser recordado. Contou-me alguém de quem gosto muito que durante as andanças pela guerra de ultramar, a sua companhia passou por uma roça (penso que era de cacau), onde um capataz exercia arbitrariamente a sua autoridade com castigos físicos sobre os trabalhadores. Ao avistar os militares, sentiu-se como que legitimado na sua autoridade e reforçou a violência. Acto contínuo, o comandante enfiou-lhe um murro dizendo :- É por causa de filhos da puta como tu que nós temos que cá estar.
Eu gostava de ter feito aquilo. É como se ser um simples participante destes momentos nos engrandecesse enquanto seres humanos. É o mesmo desejo que tenho de ter sido eu a dar o isqueiro àquela senhora que queimou o sutiã, em sinal de protesto na sua luta pela emancipação das mulheres. Por outro lado, a ciência já provou, sem lugar para ambiguidades, que não é possível distinguir geneticamente as pessoas, defraudando aqueles que o defendiam fervorosamente. O que está mais que provado é que a oportunidades iguais, correspondem, na generalidade, resultados iguais, existindo aqui e ali algumas idiossincrasias que facilmente são observáveis ao nível de algumas modalidades desportivas.
E por falar em desporto, recordo emocionado a atitude dos dois atletas que, após a sua vitória, erguerem a sua mão com o punho fechado, sinal do seu empenhamento na luta pelos seus direitos cívicos. Foram censurados pelo acto quando expressavam o seu direito à indignação. Estes e outros como Nelson Mandela, Frederik de Klek, Rosa Parks, Martins Luther King, são símbolos de uma mudança que a história não esquecerá. Os restantes, como diz o Ricardo de Araújo Pereira, figurarão nos livros com o epíteto de “Bestas do Caralho”.
O racismo é a negação da humanidade. Um racista tem problemas com a sua própria identidade e afirmação enquanto ser humano, não se enquadrando, por isso, neste espantoso acontecimento cósmico que é a vida. Nunca é demais frisar o valor da ciência neste campo das desmistificações, que também descobriu que o chimpanzé partilha 97% do nosso genoma. Há por isso toda uma escala até aos 100% que tem de ser preenchida por alguém. Temos então o PNR. Estou a ler um livro de onde saiu o título deste texto, a estupidez circular mais não é de que aquela que, independentemente do ângulo de observação, é sempre estupidez.
Filipe Pinto.
A Razão da Mudança
Há 14 anos
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