sexta-feira, março 03, 2006

A Maldade



Antes de iniciar a leitura deste texto e para melhor se enquadrar aquilo que pretendo dizer com estas humildes palavras sugiro uma leitura da frase de abertura deste Blog, essa sim de uma profundidade só ao alcance dos imortais. E John Stuart Mill é de facto um imortal. Considerado em alguns círculos como o ser humano mais inteligente que já alguma vez viveu, deixa-nos este brilhante pensamento que deveria ser um dos lemas do desenvolvimento humanitário. Curvo-me perante a grandeza.
Na semana passada aconteceu algo que nos deveria levar a questionar a forma como são educadas algumas crianças, nomeadamente, as que o são nas instituições e, neste caso, de dirigentes com ligações à Igreja Católica. Um homem que era homossexual, transsexual, toxicodependente e sem-abrigo, atributos marcadamente estigmatizadas pela sociedade em que vivemos, foi abominavelmente assassinado por um grupo de jovens. A maldade do acto é de uma dimensão impensável. As sovas. A tortura sádica. O abandono. O regresso para a estocada final.
É importante discutir agora algumas das possíveis causas para este actos. Partindo do princípio que o nosso pensamento gravita em torno do bem e do mal, o que diferencia as pessoas é a sua consciência. É elucidativo disto mesmo que os grandes escritores, ao conceberem as suas personagens, consigam por em evidência as características e as acções de quem está num e noutro campo, sem maniqueísmos, uma vez que são arquétipos do mundo real.
Shakespeare, expoente máximo da literatura e drama do século XVI, descreveu a alma humana em todas as suas cambiantes e, numa das adaptações das suas peças ao cinema (Titus Andronicus com Anthony Hopkins), fiquei manifestamente perturbado com uma das cenas. O enredo é uma sucessão de vinganças em que, a determinada altura, a filha do herói é raptada. Quando o pai a encontra, esta está prostrada no que restava de um tronco de uma árvore cortada, com ramos no lugar das mãos decepadas.
É fácil, por isso, inferir que a maldade não exclusiva de quem a pratica mas é transversal ao pensamento de todos e a diferença reside no desenvolvimento de uma consciência, pelas referências que nos vão surgindo no nosso percurso de vida e nos levam num ou noutro caminho. Além disso, o ser humano tende a desenvolver estratégias de auto-desculpabilização para os actos que comete como se estes fossem apenas e só uma consequência de uma qualquer influência externa.
Estes jovens encaixam perfeitamente no perfil traçado anteriormente. Se concordarmos que as referências fazem toda a diferença vejamos então o mundo em que a sua mentalidade, a sua personalidade se vai formando no que a este assunto diz respeito. É a politica vigente e o pensamento dominante na Igreja Católica relativamente a este assunto, traduzida pela voz de alguns dos seus mais proeminentes representantes, que se comenta seguidamente:
A homossexualidade é uma doença – Nuno Serras Pereira – Padre Franciscano, na revista Sábado.
Não me sinto com competência técnica para avaliar a validade desta afirmação. Todavia, merece algumas considerações, até pelo contexto em que ela o foi proferida. É claro que esta minha análise, como qualquer outra opinião, tem o direito de ser expressada. E, também, contestada. A utilização da palavra doença é um desrespeito pelos que estão efectivamente doentes, e que querem deixar de o estar, atribuindo à palavra mesmo uma conotação pejorativa, como se estes fossem os leprosos da era moderna.

Não é necessário grande esforço de memória para demonstrar que, sendo homossexuais, existiram seres humanos que foram, são e serão faróis da humanidade (para se compreender mais facilmente, evoco o nome de Leonardo da Vinci), cujo brilhantismo e criatividade são os único e verdadeiros milagres à face da Terra. Não necessitam de ter uma vida austera, auto flagelante, de sacrifico inútil para depois uma qualquer comissão científica nada independente os elevar ao estatuto de santos ou beatos. Ao contrário, durante muitos séculos, os homens da religião foram os buracos negros da humanidade, sorvendo tudo o que os rodeava e impedindo a sua evolução.
Por outro lado, na mesma medida, o celibato pode ser considerado uma doença. Uma negação dos instintos humanos da mesma forma que um homossexual negaria os seus. Mas, sendo uma opção de vida, não é susceptível de julgamento, sendo a frase anterior completamente desprovida de propósito, a menos que os celibatários (se é que os há) considerem a sua situação imbuída de alguma espécie de supremacia moral.
E já que falamos em algumas contradições, o apelo contínuo à elevação espiritual em simultâneo com a redução do ser humano ao ser biológico, cuja função sexual deveria servir apenas para a reprodução, sempre imbuída numa aura pecaminosa, quando é, indiscutivelmente, uma das componentes mais importante do equilíbrio emocional. Continuam a defender esta posição mesmo sabendo a grande maioria dos católicos não tem esta perspectiva de vida, nem esta redutora concepção de ser humano.
É pior o Aborto do que a violação de uma criança. – Não me lembro do nome de quem fez esta afirmação, mas estava num Jornal.
Pior que a quantificação dos actos, vota quem foi vítima de abuso sexual a um caso de somenos importância. Nem sequer consigo começar a imaginar como estas pessoas estão afectadas psicologicamente, como estão condicionadas durante toda a sua existência por feridas que nunca cicatrizam. A redução da dimensão de uma agressão à inocência infantil, que tem dolorosos e castrantes efeitos, é inqualificável.
O cardeal D. José saraiva Martins, perfeito para a congregação da causa dos santos, em entrevista às televisões, sobre o casamento de homossexuais e a adopção de crianças por parte destes casais:
È uma aberração. – diz ele
Apesar de envolvido em algumas beatificações e canonizações controversas, de pessoas de santidade controversa e de milagres ainda mais controversos, teceu esta “notável” consideração. Se em relação à adopção partilho da essência mas nunca da forma, uma vez que, atendendo ao ambiente da sociedade actual, a homossexualidade é um estigma social pesado dos potenciais candidatos à adopção, que seria transferido para o adoptado, não tendo este último nem escolha nem defesas.
No entanto, eu acredito na espécie humana, e a morte é rejuvenescedora das mentalidades, as gerações sucedem-se e a esperança reside na possibilidade de que as seguintes façam melhor que as anteriores. Quanto ao casamento, chamem-lhe outra coisa, mas permitam-lhes os mesmos direitos, já que os deveres também são os mesmos. O caminho para a felicidade é traçado individualmente.
Em jeito de conclusão, estas opiniões, que mais não são que ideologias atávicas, por si só, não têm o poder suficiente para manipular as pessoas, mas constituem parte integrante da matriz educacional destes jovens, já de si problemáticos. Conjugado com a sua juventude e a fase de desenvolvimento em que se encontram, a adolescência, onde qualquer coisa assume uma dimensão a maior parte das vezes despropositada, obtemos uma combinação explosiva. Quando se formam grupos, este mal-estar existencial latente, mais facilmente se liberta sob a forma de violência. A agravar tudo isto, a psicologia dos comportamentos de multidões diz-nos que tudo se torna incontrolável, sucedendo-se coisas que individualmente seriam impensáveis.
Regressando à frase de abertura, de John Stuart Mill. Encerra toda a sabedoria da humanidade. Dado o seu nível intelectual, intocável, são homens como este que criaram sugestões de normas de conduta pelas quais nos deveríamos gerir. Resta a nós termos a capacidade para o fazer. Parece que não temos.

Filipe Pinto.

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