segunda-feira, dezembro 11, 2006

A Face Negra das Cores


Se pensarmos bem, a dimensão do impacto de uma imagem resulta em grande parte da infinidade de tons que as cores podem adquirir nas suas mais ténues cambiantes. Os contrastes que surgem definem a perfeição das formas e realçam os pormenores, que são a diferença entre o banal e o grandioso, o que nos permite não só apreciar os efeitos da acção da luz do ponto de vista físico sobre os nossos olhos, mas também assimilar o valor metafísico do que é observado e que é responsável quer pelo deslumbramento quer pelo desencanto.
Cada uma das cores da palete divina possui, como diz o poeta, uma face negra, se estão associadas a acontecimentos perturbadores, sobretudo se a tragédia humana for marcante. É o acontecimento em si que pode introduzir esta carga negativa. Cada imagem deste tipo tem uma força sedutoramente incómoda e, por isso mesmo, são decalcadas até ao mais ínfimo pormenor para a nossa memória.
Na designada primeira guerra em directo a cor que dominava os ecrãs na noite era o verde, que tantas vezes foi associado à nobreza da alma humana, e se transformou nesse instante na cor da ignomínia. Nestas transmissões, por vezes, vislumbrava-se um rasto de luminoso a aproximar-se das casas, qual cavalo de fogo onde a Morte vinha montada, que nas suas vestes pretas se preparava para mais uma colheita oferecida pela iniquidade da humanidade. O zumbido inicial transformava-se num ruído enlouquecedor à medida que os potenciais alvos se reduziam em número mas aumentava a dor resultante da progressiva definição do local de embate, onde as pessoas, dominadas por um pânico incomensurável, desesperavam pela incerteza do último segundo.
Montanhas de cimento e ferro, corpos esventrados, corpos retalhados em fragmentos sem a possibilidade de identificar que pedaço pertence a quem. O sangue de um vermelho vivo, espalha-se erraticamente, tentando dissolver-se no chão, sem o conseguir. A mancha gerada, de um castanho outonal, como o das folhas que terminam o seu ciclo de vida, não desaparece. A Terra, entidade viva, como que por pudor evidencia deste modo a indignidade que é perder vidas de forma tão ignóbil.
Lavam-se as calçadas e a água, vermelha de sangue, some-se nas sarjetas como um vulgar esgoto, escondendo a nossa auto humilhação. O fumo dissipa-se nos seus tons cinzas e negros para o céu azul, conspurcado na sua magnanimidade pela irresponsabilidade humana. Incompreensivelmente, o Homem continua a poluir o céu e os mares no seu azul eterno, fontes de inspiração de tantas obras de arte, que quase perdem o seu sentido por serem dedicadas por uma humanidade que os declarou seu património e os sujeito ás suas vontades mesquinhas.
Como se não bastasse, demonstra-se uma incoerência mórbida quando se testam as armas que criamos, e que podem significar a nossa aniquilação, nas entranhas do planeta, que se lamenta do alto dos cogumelos cor-de-laranja com as agressões sofridas.
Tudo isto provoca uma náusea que se faz notar na pele, a alma vomita uma dor que não consegue suportar, em resultado de um sentimento de nojo pela nossa própria inconsequência enquanto seres vivos pensantes, a fazer lembrar o induzido pelo escarro amarelo e gelatinosos que percorre a garganta e que alguém cospe no chão.
Filipe Pinto.

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