quinta-feira, abril 20, 2006

Nós e a Estrada


No final das operações de vigilância das estradas em épocas que coincidem com os principias feriados e com grandes deslocações na população, faz-se um balanço que é, invariavelmente, dramático. Os mortos são sempre muitos, os feridos imensos e os acidentes incontáveis. As causas todos as conhecem. As medidas para a resolução dos problemas não conseguem ter efeitos significativos.
Uma forma de enquadrar estas conclusões acaba por ser partilhar a experiência do que é morar na proximidade de uma estrada como o IP4 tentando, desta forma, mostrar o que significa conviver em permanência com o infortúnio resultante dos acidentes que frequentemente sucedem numa estrada como esta.
Certo dia assisti a uma conversa, quando passeava na cidade, bastante elucidativa no que diz respeito ao carácter desconcertante dos comportamentos que as pessoas foram desenvolvendo relativamente às sucessivas tragédias que ocorrem naquele itinerário O assunto era sobre a direcção que uma ambulância seguia, cuja sirene se fazia ouvir aos berros a uma velocidade quase alucinante. O seu conteúdo resume-se facilmente.
Um dos intervenientes fez referência à ambulância, o seu interlocutor rapidamente disse que deveria ser mais um acidente no IP4.Não foi o facto de ter estabelecido a ligação de imediato. Foi a forma como o disse e o timbre de voz utilizado que me deixaram espantado. Um misto de resignação conjugado com uma assustadora certeza na afirmação, como se a sua suposição fosse algo mais que isso, a única hipótese plausível para o surgimento da ambulância. Esta certeza é, por si só, absolutamente desconcertante. É como se o epíteto de “estrada da morte” implicasse de facto uma fatalidade a cada sinal de urgência. Pior que isso, o aparente condicionamento surgido da convivência diária com esta realidade, parece ter como consequência um distanciamento psicológico, em que mais um acidente já não provoca qualquer tipo de choque.
Aliás, uma das mais pungentes ocorrências que testemunhei está precisamente relacionada com o acidente de um amigo.
Num dia como tantos outros, no caminho para o trabalho, oiço no rádio a anunciar um acidente de viação no IP4. Nada de anormal até aqui. Como já sucedeu algumas vezes e porque esse é o seu percurso diário, normalmente, recebo uma chamada a pedir para eu avisar no serviço que vai chegar tarde. As filas resultantes costumam ser grandes e demoradas. De facto recebi a chamada, mas para meu espanto, não me disse que ia chegar atrasado, mas sim que o acidente tinha sido com ele.
Desloquei-me ao local e, ao chegar, o aparato do costume, enfim nada a que quase toda a população portuguesa ainda não tenha feito. Dirijo-me ao carro e subitamente apercebi-me da frágil condição humana, numa reacção desencadeada pelo aparecimento de pessoas com relações de amizade e que, instintivamente, nos fazem ceder aos nossos sentimentos mais profundos.
Assim, com a voz embargada, com lágrimas nos olhos, num rasgo de clarividência evidentemente relacionado com a proximidade com a morte, apenas disse:
-Pensei que nunca mais via os meus filhos.
Fui trespassado por um sentimento de solidariedade. Nesse momento, as lágrimas acercaram-se dos meus olhos e apenas não chorei por mero acaso.O resto não interessa.
Este drama humano, tantas vezes visto e revisto, terminou sem sequelas maiores, mas quantos e quantos não voltaram a ver os filhos, as mulheres e os maridos, os pais e os irmãos. Um manto de morte distende-se ominosamente sobre todas as estradas e parece que não faz diferença absolutamente nenhuma. Tudo o que se diz e faz não passa, por um lado, de meros artifícios de linguagem e, por outro lado medidas preventivas sem resultados, invariavelmente, são esquecidos. Nos carros, as pessoas convivem em permanência com esta condição, pensando que um dia, nesta ou naquela estrada serão confrontados com uma situação semelhante, ou pior.
Regressando às causas parece-me evidente que não podemos imputar os acidentes apenas à qualidade das estradas. As duas principais são o álcool e o excesso de velocidade.
Quanto ao primeiro, está regulado e apenas depende da consciência de cada um.
Quanto a o segundo, ocorre-me a história do escorpião e da rã: Resumidamente a rã ofereceu-se para atravessar o escorpião num riacho. A meio do caminho este espetou o seu ferrão na rã, que já moribunda lhe pergunta
– Porque fizeste isto?
Agora vamos morrer os dois.
Resposta – Não consegui evitar. È a minha natureza.
Quer isto dizer que é muito difícil resistir à tentações, aos fluxos de adrenalina provocados pela velocidade e que viciam e, com os meios disponíveis, utilizam-se. Em Portugal, o nível da falta de civismo na condução é insuperável. Após as várias tentativas infrutíferas de o transmitir à população, tudo continua vergonhosamente na mesma. É, por isso, que provavelmente não é feita a abordagem ao problema que a gravidade da situação exige.
Assim, todos sabemos que grande parte dos acidentes são provocados pelo excesso de velocidade e basta comprar uma revista da especialidade e olhar para a coluna das velocidades máximas para verificar que, pura e simplesmente, não existe uma única marca que indique que seu carro não ultrapassa os 120km/h ou mesmo, os 150Km/h.
Estamos perante, claramente, uma espécie de fábrica de ilusões. É irrefutável que saber de antemão que ao por à disposição das pessoas algo que os pode levar a violar a lei é um estímulo que deveria ser controlado por quem o pode fazer, nomeadamente o Estado, à semelhança do que faz com muitas outras coisas.
Provavelmente, o que é necessário é coragem para regulamentar e enfrentar os lóbis dos construtores de automóveis e ter sempre presente que, ao que parece, a única pessoa que conseguiu resistir à tentação, foi Jesus Cristo.
Filipe Pinto.

Sem comentários: