sábado, abril 08, 2006

Nós Que Olhámos Para o Nosso Umbigo


Uma das consequências da selecção natural, a famosa e mais que comprovada teoria de Darwin, foi o surgimento de um ser com capacidades intelectuais, que se foram aprimorando ao longo dos milénios, e que lhe atribuíram vantagens competitivas suficientemente importantes para poder ser a espécie dominante do planeta.
Este ser tornou-se tão tecnologicamente avançado que as suas actividades trouxeram graves desequilíbrios na dinâmica planetária tendo, segundo numerosos estudos, colocado alguns condicionamentos graves à qualidade de vida ambiental, factor de enorme importância se atentarmos por exemplo às consequências que as alterações climáticas poderão acarretar.
A evolução da vida na Terra ocorreu num intervalo de tempo de cerca de 4600 milhões de anos e, portanto, o tempo de existência do ser humano é quase irrelevante à escala do tempo universal. Os estragos provocados, todavia, não são proporcionais mas claramente exponenciais. Existe uma famosa comparação que estabelece uma regra para permite uma melhor compreensão. Se fizermos corresponder a uma dia os 4600 milhões de ano, o período de existência dos seres humanos é o último segundo.
As condições naturais oferecidas pelo Planeta são suficientes para garantir a vida à totalidade dos seres vivos, se não existisse a espécie humana, uma vez que durante muitos milhões de anos, como se sabe, coexistiram muitas espécies de seres altamente complexos.
Perante esta descrição pode pensar-se que são apenas as condições naturais que tornam alguns lugares do mundo complicados para se nascer quando se avaliam as condições de vida que se oferecem aos seres humanos. Todavia, o observa é uma gritante diferença entre os países ricos e os países pobres, e as imagens da fome que são recorrentemente utilizadas nos meios de comunicação social, são bem elucidativas.
Sempre que se vê uma reportagem sobre África, por exemplo, é incontornável a utilização deste instrumento de choque para impressionar as pessoas. O resultado é invariavelmente o mesmo. Durante cerca de cinco minutos ficamos imbuídos num espírito de solidariedade e desejámos fazer alguma coisa mas, logo a seguir, alguém nos chama para jantar, onde se inicia o desperdício, à primeira garfada tudo se esquece (há mais comida em alguns caixotes do lixo na Europa do que em alguns locais com milhares de pessoas por esse mundo dos miseráveis). Olhámos, um esgar de choque, uma possível lágrima no olho, muda a notícia e o nosso cérebro, como que treinado para o efeito, envia para a sua reciclagem aquele ficheiro.
As mortes sucedem-se em catadupa. As valas comuns são aos milhares, de gente que também merecia uma lápide, para pelo menos alguém chorar a sua morte, sentir a sua falta, amar ou ser amado, por mais pequeno que seja o tempo que cá se esteve. Só que, nesses locais, as mortes são tantas que já nem sentem. O pensamento dominante não andará longe deste – é apenas mais um, amanhã, certamente será outro – e quem pensa é porque sobreviveu mais um dia. As causas para o sofrimento são tantas que é impossível atribuir a importância devida à morte de uma pessoa. Tudo é relativizado em função da sobrevivência.
Em contraste com os milhares que morrem de fome, alguns daqueles das imagens, com apenas pele e osso na verdadeira acepção das palavras, coexiste a tão propalada geração de obesos do mundo ocidental. Esta condição não é apenas resultado dos maus hábitos alimentares e sedentarismos, é da abundância e, em certa medida, do pecado da gula tão bem explorado pela publicidade. Enquanto estes são sedentários por opção e, pelos motivos já mencionados, tornam-se obesos, os outros são sedentários por obrigação uma vez que nem se conseguem suster de pé, de tão grande que é a sua debilidade física.
Tudo isto é, talvez, o resultado de uma estupidificação generalizada de quem se habituou de tal forma a um determinado nível de vida, do qual não consegue prescindir. Por exemplo, se em todo o planeta o nível de vida fosse igual ao inglês, seriam necessários os recursos de três planetas iguais aos nossos para o manter.
É como se a Terra e a humanidade fossem a presa e um grupo de leões. As leoas caçam e o primeiro a servir-se é o leão que, normalmente, quando saciado, deixa comer os outros. Só que estes leões comem sempre para lá da saciedade, as suas vidas gravitam em torno de uma necessidade compulsiva. Acumular bens. Este comportamento dificilmente será alterado.
Além disso, a incapacidade até ao momento demonstrada para a aplicação de uma simples operação aritmética como a divisão de quem tem em excesso com quem não tem nenhum, nem sequer é de quem tem apenas para si mas de quem tem em excesso, não se vislumbra qualquer vontade de redenção. Os mortos vão continuar sem lápides.

Filipe Pinto.

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