quarta-feira, janeiro 17, 2007

Desgraça Clandestina


Chamo-me M. e tenho 16 anos. Estou grávida e não quero estar. O desespero apossou-se de mim e não sei o que fazer. Já pensei em matar-me mas eu quero viver. Falar com os meus pais é impensável. O meu pai é um alcoólico incorrigível, nunca trabalhou ou teve uma ocupação digna desse nome. É inútil qualquer esforço de memória que faça para recordar um momento de sobriedade em que ele se tenha revelado algo mais que o animal que me sovava a mim e aos meus irmãos até as lágrimas dissolverem a dor. Em inúmeras ocasiões era mesmo a fraqueza por não termos que comer que tornava tudo mais fácil de suportar. Ficávamos prostrados, num estado de letargia provocado pela fome. Nestas alturas que a pancada era menos dolorosa, porque facilmente perdíamos os sentidos ou tombávamos. Ninguém conseguia gritar, o que lhe retirava o ânimo.
A minha mãe tem uma atitude perante a vida que me lembra os meus amigos quando estão pedrados. Os olhos sempre fixos num ponto imaginário, completamente alheada da realidade, ou quando muito presa ao seu mundo. Existe não existindo, como se a vida dela se desenrolasse num plano diferente do nosso e nós somos apenas objectos translúcidos, sem substância, como que parte de um estranho sonho.
Fiz-me adulta muito nova, nas ruas. Sobre sexo aprendi com os outros. O que ninguém me ensinou ou me descreveu foi o significado do tesão, do desejo que não consigo controlar. Tudo seria mais fácil se fossemos como os bichos que têm as épocas de cio para procriar. Não o faço com qualquer um, mas com quem gosto perco deliberadamente o controlo. As carícias, os beijos, a queca, e é como se aqueles momentos fossem uma compensação para o sofrimento de que ninguém nos protege.
Não sou a única com uma vida miserável. Os casos aqui, no meu bairro, são mais que muitos. E tudo já mudou bastante. As assistentes sociais têm feito um bom trabalho, mas são poucas e não conseguem abranger todos os problemas.
Para pílulas não há dinheiro, roubam-se preservativos e esperamos estar sempre prevenidos. Só que o Verão é uma coisa terrível. E à noite é fácil soçobrar. Os corpos parecem que emanam um perfume inebriante que acicata a vontade. Tudo direito, preservativo colocado e o filho da mãe rebentou. Não vai acontecer nada, pensei eu. Se me tivessem falado da pílula do dia seguinte, eu podia ter feito alguma coisa. Quando não me veio o período, e como muitas amigas estavam ou estiveram grávidas, decidi fazer um teste.
Positivo.
Tudo se desmoronou. Não tenho a mínima hipótese de criar um filho. E para a adopção, nem pensar.
Por tudo isto, quando ouvi falar dos desmanchos, resolvi descobrir onde os faziam e arranjei o dinheiro com o menino que me pôs neste estado. Chego ao prédio que me indicaram e, sem ficar muito espantada, parece que vai cair a qualquer momento. Penso em ir embora, mas não o faço. Nem sei muito bem porquê. Entro e levam-me para um quarto. Sento-me numa cadeira cheia de ferrugem e ponho as pernas na posição. Sem anestesia, sinto tudo e a dor é alucinante.
Sei que passou pouco tempo, não tirei os olhos do relógio, mas aqueles momentos decorreram com uma lentidão própria que se gera quando alguém deseja ardentemente uma coisa que é como se cada segundo se transformasse numa amostra de eternidade.
Já está, diz-me com uma frieza desumana, assim como as suas recomendações. Saio e caminho em direcção a casa e sinto uma tontura. Deve ser normal, penso. A seguir, outra e outra, começo a ver o mundo como que através de uma bruma e percebo que algo está errado. Começo a sentir o sangue a escorrer-me pelas pernas abaixo em golfadas que não são normais. Não me consigo manter de pé e caio. Sinto no chão gelado algo a envolver-me num abraço tépido.
Alguém se aproxima e diz que me estou a esvair em sangue e pergunta-me qualquer coisa que não consigo compreender. Esforço-me por falar mas não consigo articular nenhum som. Será isto morrer? Tenho tanto medo. Chamam o 112 e continuam a tentar falar comigo. Não sei quanto tempo passou, mas oiço a sirene da ambulância…
Filipe Pinto.

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