“Quanto ao poder laico, e livre, da política, é clara uma transferência do poder político para o poder religioso. É sintomático que as grandes discussões a que, desde há tempos, o País assiste tenham subjacente uma jaez militar ou religiosa. Progressivamente é essa a duplicidade institucional que ordena, solidifica. Do último ponto de vista dois exemplos recentes adensam a preocupação já expressa: por um lado a competição política, provinciana, que já se vislumbra e decerto crescerá, à volta da visita do Papa a Portugal. Pelo rumo que o facto leva vamos assistir naquele que devia ser um acontecimento pastoral e moral de extrema importância, a um jogo turvo de influências, para que saiba quem convidou, quem esteve mais minutos com Sua Santidade, quem mais o acompanhou, quem ganhou os seus louros. O segundo tem que ver com o tom ‘Cro-Magnon’ com que a questão do aborto tem sido tratada entre nós. (…) a AD não tem a menor autonomia de discurso, já se não pede de voto, nem de vontade, em relação à Igreja, e limita-se a repetir o que esta diz,a presenciar o que esta proclama. Os socialistas dividem-se entre a sua história e a história que a Igreja quer que eles façam.Só por referência lembre-se, por exemplo, que em França foi uma liberal, assumida como tal, da maioria giscardiana, a senhora Simone Weil quem, contra os mais conservadores e os mais ortodoxos, impôs a lei do aborto. Lá, os socialistas não tiveram dúvidas. Giscard, líder da maioria, não interferiu. Quer isto dizer, uma vez mais, que somos subdesenvolvidos; e que, no caso, andamos atrasados, à direita e à esquerda. A menos que se rejeite a Europa moral e apenas se queira a Europa económica…”.
“Não tem nada a ver com a Europa um país em que o discurso da social-democracia sobre as questões morais se limita a dizer que o aborto é a restauração da pena de morte. É próprio dos mais conservadores dentro dos conservadores, e sul-americano concerteza. Não tem nada a ver com a Europa que a livre iniciativa seja um palmarés deixado vazio, preterido pelas fáceis e dóceis concessões às corporações fácticas. É próprio dos Estados sobretudo confessionais e não de sociedades civis dinâmicas. Não tem nada a ver com a Europa que se regrida a ponto de substituir o acto livre e consciente, por isso pleno e sublime de escolher uma religião, pela imposição de um princípio de obrigatoriedade, por isso sem elevação, nas escolas, de uma confissão. É próprio do passado.”
“Nesta coluna não deixei de fazer notar divergências a uma série de atitudes e propostas que não se coadunavam com princípios modernos de relacionamento entre a sociedade, o Estado e as instituições. Assim se fez quando o Governo anunciou a concessão de um canal de Televisão à Igreja; assim se fez quando surgiu na maioria um discurso primitivo e desinteressante a propósito das questões éticas ou morais, como o aborto, mais afeito a ‘slogans’ que à percepção de um problema que não é fechado; assim se fez, recentemente, a propósito da reintrodução da obrigatoriedade das aulas da religião e moral nas escolas, por considerar-se a escolha religiosa um acto só sublime quando livre.”
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