O ano mudou mais uma vez, trazendo-nos até ao fim da primeira década do novo século. Escrevo os números no meu diário.1910. Será possível?
Lióvuchka está agora a dormir e não vai acordar até ao nascer do dia. Há pouco tempo, o som cavo dos seus roncos fez-me atravessar o corredor até chegar ao quarto. Os roncos dele ressoam pela casa como uma porta que range, e os criados riem-se disso. “Lá está o velhote a serrar lenha”, é o que eles costumam dizer, mesmo à minha frente. Já não me respeitam, mas continuo a sorrir-lhes.
A forma como Lióvuchka ressona já não me incomoda, uma vez que dormimos agora em quarto separados. Quando dormíamos na mesma cama, ele tinha dentes, o que atenuava o ruído.
Seitei-me na cama pequena e estreita e puxei-lhe o cobertor, com motivos de chaves estampadas, até ao queixo. Ele sobressaltou-se e fez uma careta monstruosa, mas não acordou. Quase nada acorda Lev Tolstói. Tudo aquilo que ele faz, fá-lo por completo, quer seja a dormir, trabalhar, dançar, andar a cavalo ou a comer. Estão sempre a escrever sobre ele na imprensa. Até mesmo em Paris, os matutinos adoram todos os mexericos acerca dele, acerca de nós – verdadeiros ou falsos, isso não importa. “O que é que o conde Tolstói gosta de comer ao pequeno-almoço, condessa?”, perguntam eles, a fazerem fila no alpendre da frente para obterem entrevistas nos meses de Verão, quando o tempo em Tula faz desta localidade um destino muito agradável. “É ele quem corta o próprio cabelo? O que está ele agora a ler? Já lhe comprou um presente para comemorar o dia do santo dele?”
As perguntas não me incomodam. Forneço-lhes apenas o suficiente para os enviar de volta felizes. Lióvuchka parece não se importar. De qualquer forma, já não lê os artigos, mesmo quando os deixo na mesa ao lado do pequeno-almoço.”Não têm qualquer interesse”, diz ele. “Não sei por que é que alguém se dá ao trabalho de publicar esse lixo”.
No entanto, olha de relance para as fotografias. Há sempre um fotógrafo por aqui a tirar fotografias a tudo e a implorar por um retrato. Tcherkov é quem mais problemas causa. Pensa que é um artista com a câmara fotográfica, mas é tão absurdo com ela como é com tudo o resto.
1ª Página do livro, A Última Estação, de Jay Parini, Editorial Presença, 1ª edição, Dezembro de 2007.
Nota: Romance histórico baseado nos diários daqueles que integravam o círculo mais próximo de Lev Tolstói, o livro retrata o último ano de vida do famoso escritor.
Lev Nikolaievitch Tolstói, conde de Tolstói, nasceu no seio de uma família nobre, em Yasnaya Polyana, província de Tula, em 28 de Agosto de 1828.
Lióvuchka está agora a dormir e não vai acordar até ao nascer do dia. Há pouco tempo, o som cavo dos seus roncos fez-me atravessar o corredor até chegar ao quarto. Os roncos dele ressoam pela casa como uma porta que range, e os criados riem-se disso. “Lá está o velhote a serrar lenha”, é o que eles costumam dizer, mesmo à minha frente. Já não me respeitam, mas continuo a sorrir-lhes.
A forma como Lióvuchka ressona já não me incomoda, uma vez que dormimos agora em quarto separados. Quando dormíamos na mesma cama, ele tinha dentes, o que atenuava o ruído.
Seitei-me na cama pequena e estreita e puxei-lhe o cobertor, com motivos de chaves estampadas, até ao queixo. Ele sobressaltou-se e fez uma careta monstruosa, mas não acordou. Quase nada acorda Lev Tolstói. Tudo aquilo que ele faz, fá-lo por completo, quer seja a dormir, trabalhar, dançar, andar a cavalo ou a comer. Estão sempre a escrever sobre ele na imprensa. Até mesmo em Paris, os matutinos adoram todos os mexericos acerca dele, acerca de nós – verdadeiros ou falsos, isso não importa. “O que é que o conde Tolstói gosta de comer ao pequeno-almoço, condessa?”, perguntam eles, a fazerem fila no alpendre da frente para obterem entrevistas nos meses de Verão, quando o tempo em Tula faz desta localidade um destino muito agradável. “É ele quem corta o próprio cabelo? O que está ele agora a ler? Já lhe comprou um presente para comemorar o dia do santo dele?”
As perguntas não me incomodam. Forneço-lhes apenas o suficiente para os enviar de volta felizes. Lióvuchka parece não se importar. De qualquer forma, já não lê os artigos, mesmo quando os deixo na mesa ao lado do pequeno-almoço.”Não têm qualquer interesse”, diz ele. “Não sei por que é que alguém se dá ao trabalho de publicar esse lixo”.
No entanto, olha de relance para as fotografias. Há sempre um fotógrafo por aqui a tirar fotografias a tudo e a implorar por um retrato. Tcherkov é quem mais problemas causa. Pensa que é um artista com a câmara fotográfica, mas é tão absurdo com ela como é com tudo o resto.
1ª Página do livro, A Última Estação, de Jay Parini, Editorial Presença, 1ª edição, Dezembro de 2007.
Nota: Romance histórico baseado nos diários daqueles que integravam o círculo mais próximo de Lev Tolstói, o livro retrata o último ano de vida do famoso escritor.
Lev Nikolaievitch Tolstói, conde de Tolstói, nasceu no seio de uma família nobre, em Yasnaya Polyana, província de Tula, em 28 de Agosto de 1828.
Perdeu os pais ainda muito novo tendo sido criado por parentes. Em 1844, Lev Tolstói iniciou os seus estudos em Direito e Literatura Oriental na Universidade de Kazan, no entanto abandonou a faculdade antes de se licenciar.
Insatisfeito com a educação, regressou aos seus estudos em Yasnaya Polyana, passando grande parte do tempo em Moscovo e em São Petesburgo.Em 1851, o sentimento de vazio existencial levou-o a juntar-se ao irmão, soldado no Cáucaso.
É nesta época que inicia a sua carreira literária, ao publicar a primeira parte da trilogia autobiográfica Infância (1852), que foi concluída com Adolescência (1854) e Juventude (1857).
Em 1857, visitou a França, a Suíça e a Alemanha. Depois das viagens, instalou-se em Yasnaja Polyana e fundou uma escola para filhos de camponeses. Para Tolstói, o segredo para mudar o mundo residia na educação.
Durante as suas viagens pela Europa, analisou a teoria e a prática educacional, tendo publicado artigos e manuais sobre o tema.
Em 1862, casou com Sonya Andreyevna Behrs, que se tornou a sua secretária devota. A sua leitura abrangia a ficção e a filosofia. Entre os seus autores preferidos encontravam-se Platão, Rousseau, Dickens e Sterne. Nos anos 50 lia e admirava Goethe, Stendhal, Thackeray e George Eliot.
A obra Guerra e Paz (1863-69) reflectia o ponto de vista de Lev Tolstói, de que tudo estava predestinado. A sua outra obra-prima surgiu em 1873-77, Anna Karenina.Em 1880, escreveu obras filosóficas como A Confession e What I Believe, que foi banida em 1884.
Começou por ver-se mais como um sábio e um líder moral do que como artista.A partir de 1880, Tolstói atravessou uma profunda crise espiritual e assumiu diversas posições de cariz moral, incluindo a resistência passiva ao mal, a rejeição da autoridade (religiosa ou civil) e a propriedade privada, e um regresso ao cristianismo místico.
Foi excomungado pela igreja ortodoxa, tendo as suas obras posteriores sido proibidas. A Morte de Ivan Ilitch (1886), A Sonata a Kreutzer (1890), Ressurreição (1889-99) e Hadji Mourat (1890-1904) fazem parte deste período.
O desejo que o autor tinha de renunciar aos seus bens e de viver como um camponês perturbou a sua vida familiar, tendo acabado por fugir de casa e morrer com pneumonia numa estação de caminhos-de-ferro em Astapovo, em 7 de Novembro de 1910.
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