Está um calor de morrer em Martirio, mas os jornais que estão no alpendre até gelam com as notícias. Nem tentem adivinhar quem é que ficou toda a noite de terça-feira na rua. Uma pista: a velha e ranhosa Srª Lechuga. É difícil dizer se tremeu, ou se as traças e as luzes dos alpendres que passavam pelos salgueiros franziam a sua pele como o cetim dos caixões sob uma ventania. Fosse como fosse, quando amanheceu, tinha uma poça entre os pés. É para que vejam como as coisas normais fugiram da cidade a gritar. Se calhar, para sempre. Só Deus sabe como tentei aprender as regras deste mundo, até tive um pressentimento de que podíamos ter alguma glória; mas, depois do que aconteceu, esses pressentimentos já não são nada fáceis. Afinal, que merda de vida é esta?
Agora é sexta-feira e estamos no escritório do xerife. Parece uma sexta-feira na escola ou coisa do género. Escola – é melhor nem falar nessa merda.
Estou sentado à espera entre raios de luz que entram por várias portas seguidas, despido, só com uns sapatos, e com a roupa interior de quinta-feira. Parece que sou o primeiro que apanharam até agora. Não estou metido em sarilhos, não pensem mal de mim. Não tive nada a ver com o que aconteceu na terça-feira. Mas, mesmo assim, não iam querer estar aqui. Faz lembrar o Clarence Não-Sei-Quantos, aquele velho negro que apareceu nas notícias no Inverno passado. Foi o tarado que adormeceu nesta sala de madeira, mesmo à frente da câmara. Disseram nas notícias que isso mostrava quão pouco ele se importava com os efeitos dos seus crimes. O velho Clarence-Não-Sei-Quantos foi rapado como um animal e vestido com aquelas fardas de hospitais que vestem aos malucos, com óculos de fundo de garrafa e tudo, aqueles óculos que costumam usar pessoas que quase só têm gengivas e não têm dentes. Fizeram uma jaula no tribunal para o meterem lá dentro e condenaram-no à morte.
1ª Página do livro, Vernon Little, O Bode Expiatório, de DBC Pierce, Gradiva, 1ª edição Dezembro de 2003.
Agora é sexta-feira e estamos no escritório do xerife. Parece uma sexta-feira na escola ou coisa do género. Escola – é melhor nem falar nessa merda.
Estou sentado à espera entre raios de luz que entram por várias portas seguidas, despido, só com uns sapatos, e com a roupa interior de quinta-feira. Parece que sou o primeiro que apanharam até agora. Não estou metido em sarilhos, não pensem mal de mim. Não tive nada a ver com o que aconteceu na terça-feira. Mas, mesmo assim, não iam querer estar aqui. Faz lembrar o Clarence Não-Sei-Quantos, aquele velho negro que apareceu nas notícias no Inverno passado. Foi o tarado que adormeceu nesta sala de madeira, mesmo à frente da câmara. Disseram nas notícias que isso mostrava quão pouco ele se importava com os efeitos dos seus crimes. O velho Clarence-Não-Sei-Quantos foi rapado como um animal e vestido com aquelas fardas de hospitais que vestem aos malucos, com óculos de fundo de garrafa e tudo, aqueles óculos que costumam usar pessoas que quase só têm gengivas e não têm dentes. Fizeram uma jaula no tribunal para o meterem lá dentro e condenaram-no à morte.
1ª Página do livro, Vernon Little, O Bode Expiatório, de DBC Pierce, Gradiva, 1ª edição Dezembro de 2003.
Nota: DBC Pierce não fez a coisa por menos, no seu primeiro romance, ganhou o Booker Prize. O melhor resumo do livro, foi feito pelo escritor escocês Andrew O’Hagan, diz ele: “é como se os Osbournes convidassem os Simpsons para beberem umas cervejas e aparecesse por lá o Don DeLillo para escrever uma nova música para o Eminem”.
Compreenderam? Não interessa, eu também não compreendi, antes de ler o livro.
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