Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Foi este o auto-retrato que Bocage nos deixou, mas no dia em que se assinala o bicentenário da sua morte, o seu perfil psicológico está longe de ser tão consensual, subsistindo a seu respeito mitos, meias-verdades ou falsidades. A pretexto de uma existência libertina e de boémia, o seu nome passou a estar associado, de há 100 anos a esta parte a anedotas, que fazem parte da memória colectiva. Reduzir toda uma carreira literária onde a inovação, a sátira e o sarcasmo, efectivamente, desempenharam um papel importante, às simples anedotas que fazem parte da nossa memória, é certamente a maior injustiça cometida em toda a história da nossa literatura.
Manuel Maria Barbosa du Bocage, nasceu em Setúbal, no dia 15 de Setembro de 1765.
A sua vocação foi incentivada pelo ambiente familiar. Madame Fiquet du Bocage, uma tia-avó do poeta, era uma poetisa ilustre na época e traduzira o poeta suíço pré-romântico Gressner.O próprio pai de Bocage, cultivava a poesia nas horas vagas. Igualmente o marcou, como ele próprio sublinhou, a morte da mãe aos dez anos de idade (“aos dois lustros a morte devorante, me roubou, terna mãe, teu doce agrado”).
Frequentou a Academia Real de Guarda-Marinhas, para onde entrou em 1783, entregando-se, mais do que aos estudos, à boémia literária da Lisboa da época, frequentando botequins, sobretudo o Nicola, ao qual o seu nome ficou para sempre ligado, como famoso improvisador de versos.
Embarcou para a Índia em 1786 e serviu na guarnição de Damão, até ter desertado em 1789, embarcando para Macau, de onde regressou a Lisboa, em 1790. Nesse mesmo ano foi fundada, uma associação literária, a Nova Arcádia, na qual ingressou, adoptando o nome poético de Elmano Sadino. Dela foi expulso em 1794, devido ao seu espírito independente, sarcástico e indisciplinado.
Inquieto e atraído pela vida boémia foi preso a 10 de Agosto de 1797, na sequência de uma rusga policial, lhe terem sido detectados panfletos apologistas da revolução francesa e um poema erótico e político e anti-religioso, intitulado “Pavorosa Ilusão da Eternidade”, também conhecido por “Epístola a Marília”. Encarcerado no Limoeiro, acusado de crime de lesa-majestade, moveu influências, sendo, então, entregue à Inquisição, instituição que já não possuía o poder discricionário que anteriormente tivera. Em Fevereiro de 1798, foi entregue pelo Intendente Geral das Polícias, Pina Manique, ao Convento de S. Bento e, mais tarde, ao Hospício das Necessidades, para ser “doutrinado”.
Saiu em liberdade em 1789, convertendo-se a uma vida mais regrada em casa da irmã, Maria Francisca, que sustentou com trabalhos de tradução. Apesar da forte empatia popular e da fama de que chegou a usufruir, em particular os sonetos eróticos, os últimos anos foram-lhe dolorosos. A sua saúde sempre frágil, ficou cada vez mais debilitada, devido à vida pouco regrada que levara.
Em 1805,em 21 de Dezembro, com apenas 40 anos de idade, faleceu em Lisboa, deixando publicadas, em três volumes, Rimas (1791,1799 e 1804), completadas com a publicação póstuma de novos volumes e obras sobre a sua criação poética.
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