segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Uma Questão de Mentalidade

“Na sua acção governamental as dissenções são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto: porque não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a lista civil, a diplomacia… - propõe um imposto:
- Caminhamos para a ruína! Exclama o presidente do concelho – O deficit cresce! O País está pobre A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc…
…- Como assim! Exclamam todos, mais impostos!?”

O parágrafo transcrito é uma citação e, normalmente, no fim de o fazer coloca-se o nome do seu autor e o lugar de onde ela foi retirada. No entanto, aquilo que se pretende realçar com este texto, e com o intuito de mais facilmente nos apercebermos do quanto é caricato o momento em que se encontra o País, optei por aguardar para o fim deste texto para fazer a revelação.
Após o 25 de Abril, os governos foram-se sucedendo, os ministros foram-se substituindo, o País foi crescendo, com a melhoria substancial da rede viária, aproximando as populações, com o investimento na Educação, factor indispensável ao desenvolvimento de qualquer País, na saúde, na modernização, etc, tudo isto com vista à melhoria da qualidade de vida das populações.
Quando se esperava um reforço do exercício da cidadania, eis que surge um problema de difícil resolução. Infelizmente, com todas as mudanças que o País sofreu, os habitantes e a sua mentalidade continuam os mesmos. Vejamos então o que isto significa.
A classe política está num processo acelerado de perda de credibilidade, quer os governos quer as oposições. Os dois maiores partidos, PS e PSD, foram-se substituindo, governo institucional após governos institucional, e a cada troca, aparentemente, mais do mesmo.
Os discursos do governo empossado resvalam, invariavelmente, para as críticas ao anterior, ao mesmo tempo que prometem dar um rumo ao País o que, convenhamos, está cada vez mais difícil.
O partido que saiu do governo (passou portanto para a oposição) inicia a sua rota em direcção ao poder através de campanhas de críticas, mais ou menos lógicas, mais ou menos honestas, mais ou menos desprovidas de convicções e valores. A maioria das vezes limitam-se a acompanhar a opinião pública com óbvio interesse de o capitalizar em votos.
O governo em funções avisa a navegação de que é difícil melhorar a situação devido à pesada herança e que vão ser necessários sacrifícios, antes de se conseguir alterar o caminho que estava a ser seguido rumo à perdição.
Entretanto no parlamento, temos as dissenções. O actual modelo de funcionamento é de utilidade questionável. Não se percebe qual o propósito dos debates e muito menos se percebe como alguém pode pensar que estas discussões trazem algum beneficio para o País. Os argumentos utilizados dissolvem-se na intenção com que os aplicam, uma vez que nunca há consenso visível, vislumbrando-se apenas sucessivas acusações de incompetência e de ausência de bom senso.
Aliás, a palavra discussão adquiriu uma conotação pejorativa no parlamento. Em bom rigor, para as coisas terem algum nexo e face a um qualquer problema, deveriam surgir propostas, que seriam debatidas, sobre as quais todos deveriam opinar, no sentido da obtenção do maior consenso possível. Esta é a única forma de impedir que as leis surjam em resultado de uma imposição por maioria de voto, facto que implica que a cada alteração de governo se altere também a legislação.
E assim, de pesada herança em pesada herança, está o povo como o tolo no meio da ponte, sem saber para que lado se virar, porque uns dizem que é assim, outros dizem que é assado apenas porque o comportamento esperado é contradizer em absoluto os adversários políticos. E, porque não acredita nem nuns nem noutros, por desespero por falta de expectativas, dá um mergulho no rio, onde se pode safar sozinho sem ter que ouvir ninguém.
Tudo se resume, portanto, a uma questão de credibilidade. Quem não confia, não age de acordo com o interesse comum, mas reage permanentemente de forma a auto preservar-se. Arranjam-se uns esquemas, foge-se aos impostos, perde-se o sentido comunitário e é cada um por si. Não é egoísmo, é a exteriorização do factor humano. E os esquemas são infindáveis. Se há uma possibilidade de contornar a lei, os portugueses encontram-na. Sejam os empresários que ao formarem uma empresa criam logo várias para diluir os lucros e não pagarem impostos, ao mesmo tempo que contratam o melhor contabilista possível que os ajude a fugir. Sejam os acordos entre patrões e empregados para nunca declarem aquilo que realmente ganham. Sejam os ordenados dos profissionais liberais. Sejam os que estão a receber o fundo desemprego e a trabalhar, ou de baixa e a trabalhar. Sejam as falências fraudulentas onde fecham numa porta e abrem noutra, a lista é interminável.
Para além disso, um português gasta mais do que pode, uma família de portugueses gasta mais do que pode, uma cidade de portugueses gasta mais do que pode e, como seria de esperar, o estado português gasta mais do que pode. Isto não é uma conclusão retórica, é algo cultural, enraizado até ás profundezas na nossa alma.
Assim, o problema não é apenas dos governantes, mas também dos governados, até porque dos últimos são escolhidos os primeiros. Há, claramente, uma questão de mentalidade cultural que exige um esforço concertado para se conseguir uma inversão nos comportamentos. O trabalho para mudar as coisas tem que começar por aqui de maneira a acabar-se com expressões deste género: Quem eu? Não pago os impostos. Vou dar o dinheiro ao Estado, não?
A questão é começar por onde. Provavelmente é tentar perceber qual a influência que o nível de analfabetismo do nosso País tem no que respeita à importância dada ao exercício da cidadania na sua plenitude, principalmente o pagamento dos impostos.
Em primeiro lugar, o incumprimento por este motivo é elevadíssimo. A essência deste problema reside na ignorância existente, em resultado do analfabetismo, cuja consequência é uma visão redutora da sociedade, da vida e do mundo. A génese está, portanto, na incapacidade destas pessoas em vislumbrar numa perspectiva mais abrangente.
Em segundo lugar, há também aqueles que tiveram acesso à Educação escolar e de quem se esperaria algo mais, sobretudo que soubessem o lugar que ocupam na sociedade e cumprissem com as suas obrigações de forma natural. Em vez disso, revelam uma atroz falta de formação cívico a este respeito. Qual o motivo? A construção das suas personalidades foi feita numa matriz cultural pobre, indissociável da ignorância, do qual não se conseguem libertar.
Por um lado, se a percentagem de população que não sabe ler e escrever é cada vez menor, já os que o sabem fazer e não sabem interpretar o que lêem é cada vez maior. São os chamados analfabetos funcionais. O exemplo mais elucidativo que conheço: Quem é que nunca foi a uma agência bancária e o funcionário não colocou uma cruz no local de assinatura. E porquê? Porque a maioria das pessoas não se dá ao trabalho de interpretar o formulário.
Por outro lado, os que não são analfabetos funcionais e optam por não cumprir as suas obrigações, deveria ser cada vez menos mas, ao que parece, não são. O seu comportamento é altamente recriminável, pois agem em consciência. A acção sobre estes deveria ser ainda mais incisiva. No entanto, a leis também têm que mudar. A prescrição das dívidas fiscais é impensável. Quem não cumpre, está a roubar toda a gente. Ao mesmo tempo que beneficia dos direitos que os cumpridores têm, direitos estes que são garantidos pelo dinheiro dos impostos. Vai para tribunal e, através das manobras conhecidas de todos os advogados, continuam a roubar toda a gente, pelos atrasos na Justiça que levam as prescrições. O sentimento de impunidade resultante desta inoperância leva a que, inevitavelmente, o comportamento seja recorrente.
Curioso é que nos Países mais desenvolvidos, para além de todos serem fiscais de todos, a questão do pagamento dos impostos é de uma importância tal que, pelos motivos já referidos, temo nunca venha a ser entendida pelos portugueses. Por exemplo dos E.U.A. a fuga aos impostos é severamente punida. Um dos gangsters mais famosos da época de lei seca, Al Capone, apenas foi apanhado pelo seu némesis, o intocável Elliot Ness, por fuga aos impostos e não pelos seus outros crimes tão sobejamente conhecidos.
É neste ponto que se revela a importância da Educação no desenvolvimento de um País. Em 1900 na Inglaterra existiam cerca de 3% de analfabetos. Hoje, em Portugal, são muito mais que isso. A inteligência colectiva desta matriz populacional é incomparável. O ideal comum, a ideia de nação é muito mais fácil de implementar num País onde é intuitivo acreditar nas instituições, como um valor de todos, porque elas são mais importantes que as pessoas que por vezes as lideram. Todos sabem que sem as instituições seria a anarquia.
Em Portugal, nada disto se passa. O exemplar exercício da cidadania é uma espécie de doença contagiosa de que se foge a sete pés, o País dos esquemas, onde Chico-esperto é valorizado socialmente pela sua capacidade de ludibriar. Tudo o que existe em Portugal é o resultado da contribuição de alguns, dividido por todos, os que podem e contribuem, os que não podem contribuir e os que podem e não contribuem. No entanto, estes últimos, não deixam de se queixar das reformas baixas, dos funcionários públicos, do sistema nacional de saúde, enquanto beneficiam de tudo sem nada contribuírem. Quando se divide o que é pago por poucos por muitos, o resultado não pode ser bom. A realidade está à vista. Um País onde cada palavra é mal interpretada por que é mal entendida ou não entendida de todo, onde por natureza se desconfia de todos os outros é um País sem futuro. Se todos em conjunto não intervierem neste combate pela inversão das mentalidades, única forma de levar o País a bom porto, é inevitável a queda num poço sem fundo, a caminho, lenta e inexoravelmente, de uma situação de caos social. Se calhar é isto que é preciso, cair no fundo para que o que tem de melhor sobressaia, que a solidariedade nas causas menores seja transposta para as grandes causas, que a ousadia, a coragem de outros tempos regresse e assim se possa fazer de Portugal algo grandioso.
Finalmente, voltando à transcrição inicial que serviu de introdução ao texto. Há 135 anos Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão (Farpas Julho de 1871) escreveram aquele parágrafo que, vergonhosa e inacreditavelmente, não perdeu qualquer actualidade. Dá que pensar não dá?

Filipe Pinto.

Sem comentários: